Paulo Maluf (ao centro)
foi parceiro político de José Maria Marin (à direita)
Em sua carreira política, o presidente da CBF (Confederação
Brasileira de Futebol) e do COL (Comitê Organizador Local), José Maria Marin,
teve ligação com a ala mais radical do governo militar, conexões com órgãos de
vigilância e de repressão e fez elogios ao regime. É o que revelam documentos
dos arquivos da ditadura obtidos pelo UOL
Esporte.
A reportagem pesquisou
mais de 100 papéis relacionados ao dirigente nos arquivos do Dops (Departamento
de Ordem Política e Social), do SNI (Sistema Nacional de Informação), órgãos
que reuniam as investigações do regime, e na Assembleia Legislativa. A partir
desta quinta-feira, será publicada uma série de reportagens sobre a atuação
dele como político nos anos de chumbo.
O início da carreira de
Marin foi aos 31 anos, como vereador em janeiro de 1964, pouco antes do golpe
militar. Elegeu-se pelo PRP (Partido de Representação Popular) com base
política em Santo Amaro, bairro da zona sul de São Paulo. Em 1966, foi para a
Arena (Aliança Renovadora Nacional), partido do governo.
A partir daí, iniciou
sua ascensão com a ajuda do núcleo do regime. A ficha de Marin no SNI conta que
ele chegou à presidência da Câmara de Vereadores graças a manobras nos
bastidores do Ministério da Justiça, cujo titular era Gama e Silva, e de
militares. O jurista foi o redator do AI-5 (Ato Institucional-nº5), que cassou
direitos políticos e instituiu o período mais negro da ditadura no fim de 1968.
"Na verdade, a
eleição de Marin resultou de um esquema montado pelo Dr. Luis Roberto Alves da
Costa, chefe do gabinete do ministro da Justiça, com o apoio de correntes
militares", relatou o SNI. Alves da Costa foi descrito como
"truculento" e bem relacionado "nos meios políticos e
policiais".
Uma análise do SNI,
anterior à votação na Câmara, descreveu Marin: "É considerado fraco por
seus pares. Consta que sua candidatura tem apoio de círculos militares e de
elementos ligados ao ministro da Justiça." E, depois, o organismo analisou
seu trabalho à frente da Câmara: "todos os atos de Marin (...) são
"sugeridos" pelo esquema que o elegeu presidente da Casa".
É importante lembrar que
políticos alinhados com o regime militar também eram alvos dos órgãos de
investigação do governo. Dados sobre eles são mais confiáveis porque não têm
influência da leitura política. Caso os investigados tivessem tendências
esquerdistas, poderiam ser cassados.
A ficha de Marin completa
no SNI, que concentrava informações dos aparelhos de vigilância, foi feita em
1978 quando se tornou candidato a vice-governador. O político era
descrito como "integrado" com a "Revolução de 1964" e com
posição ideológica "democrata" – era a denominação dada pelo regime
para quem o apoiava. Tanto no SNI quando no Dops não houve registro de atitude
"subversiva" dele (contra o governo).
Sua fidelidade foi
essencial para a ascensão, mas ele trocou de corrente entre os governistas. O
documento do SNI contou que ele traiu Luis Roberto Alves da Costa, que o levara
à presidência da Câmara dos Vereadores, para se aliar ao prefeito biônico Paulo
Maluf. Assim, Alves da Costa passou a trabalhar contra Marin e até sugeriu que
ele poderia ser cassado, o que nunca ocorreu.
Até porque Gama e Silva
saiu do ministério no final de 1969. E Marin se manteve próximo da cúpula
militar. Foi à posse do general Emilio Garrastazu Médici, que depois virou
presidente, no comando do III Exército. Na década de 70, como deputado estadual,
houve novas conexões com órgãos de vigilância e repressão.
Na campanha à
assembleia, no final de 1970, Teresa de Carvalho pediu proteção ao Dops por ter
sido "prejudicada e ameaçada" por Marin. Motivo: fazer campanha para
outro candidato, Agnaldo Carvalho. O Dops não registrou ter tomado medida para
atendê-la.
Em maio de 74, o
político da Arena fez loas ao delegado Rubens Liberatori por sua nomeação à
chefia do DEIC (Departamento de Investigação sobre Crime Organizado). Com
Liberatori no comando, o DEIC efetuou a chamada "Operação
Camanducaia".
Segundo o livro
"Crianças e Adolescentes", cerca de 90 menores foram detidos no
centro de São Paulo e depois postos em um ônibus policiado para o interior. Na
rodovia, perto de Camanducaia, a polícia os expulsou, os despiu e os agrediu.
Liberatori foi responsabilizado pela operação por chefiar o departamento. Em
sua defesa, alegou que os policiais tinham agido à sua revelia.
No discurso, Marin
revelou ser próximo a ele e ter frequentado seu gabinete. "Ninguém em São
Paulo desconhece o trabalho, a honradez, principalmente o grande idealismo do
dr. Rubens Liberatori", disse.
Foi também em 1975, em
outubro, que o político fez dois discursos pedindo providências sobre a TV
Cultura porque algumas reportagens não retratavam corretamente o governo. Dizia
que os programas causavam "intranquilidade" nos lares de São Paulo.
Pouco depois, o jornalista da emissora Vladimir Herzog, que era comunista, foi
preso e assassinado pelo DOI-Codi, organismo de repressão.
No mês seguinte, o
político do Arena pediu uma audiência no SNI, como informa relatório do próprio
órgão. Não há nenhuma explicação nos documentos sobre o teor da reunião.
Um ano depois, em 1976,
na assembleia, foi a vez de Marin elogiar o delegado Sergio Paranhos Fleury, um
dos líderes do instrumento de repressão do Dops. "Não só honra à polícia
de São Paulo, como também há muito é motivo de orgulho inclusive à população de
São Paulo", discursou.
MARIN E A LINHA DURA
Ficha de Marin no SNI (Sistema Nacional de
Informação) mostra que sua ascensão da presidência da Câmara dos Vereadores foi
articulada pelo Ministério da Justiça, responsável pelo AI-5, e por correntes
militares. Outro trecho da ficha confirma esse dado. O documento também revela
que Marin traiu quem lhe ajudou para apoiar Paulo Maluf e consolidar sua
ascensão política
Ficha de Marin no SNI (Sistema Nacional de Informação)
mostra que sua ascensão da presidência da Câmara dos Vereadores foi articulada
pelo Ministério da Justiça, responsável pelo AI-5, e por correntes militares.
Outro trecho da ficha confirma esse dado. O documento também revela que Marin
traiu quem lhe ajudou para apoiar Paulo Maluf e consolidar sua ascensão
política
Também se mantinha
alinhado ao governo federal e contrário à abertura política rápida. Em 1975,
rechaçava a criação de terceiro partido, além do MDB e o Arena , posição igual
a do então presidente Ernesto Geisel, a quem fez elogios. Foi mais explícito na
exaltação ao regime militar em discurso em 31 de março de 1977, aniversário de
13 anos do golpe.
"Há 13 anos ocorreu
o grande movimento revolucionário, em que o povo teve participação ativa. Para salvar
este país que se encontrava à beira do caos", defendeu.
"Os períodos
conturbados ficaram distantes para dar lugar a um período de paz e
tranquilidade e permitir um maior progresso e desenvolvimento, tendo como base
a segurança e a responsabilidade de todos os brasileiros", discursou na
assembleia. Para Marin, os benefícios do golpe eram "indiscutíveis",
não podendo restar dúvida sobre isso.
Tornou-se
vice-governador pela Arena, em 1978, na chapa encabeçada por Paulo Maluf. Mas
os indícios de sua ligação com aspectos mais truculentos do regime não cessaram
como mostra um relatório do CISA (Inteligência da Aeronáutica), de 1980, sobre
assalto ao jurista Dalmo Dallari Gama.
Defensor da democracia,
Dallari foi espancado e acusou grupo paramilitar de direita. Ainda afirmou que
o então vice-governador Marin tinha ligações com a agressão. O político negou e
prometeu que o Dops, o órgão acusado de repressão na década de 1970, iria
apurar o caso.
Já como governador, após
a renúncia de Maluf, Marin passou a ser protegidos por policiais do Dops. O
departamento de polícia registrou cada viagem ou participação do político em
eventos públicos, como revelam os boletins do órgão. O objetivo era identificar
se havia protestos contra o governador e contra o regime.
Questionado pelo UOL
Esporte sobre os fatos relatados
nos arquivos da ditadura, Marin se negou a falar sobre o assunto. Em texto à
"Folha de S. Paulo", afirmou que era do partido do governo, mas que
era "sabido por todos (...) que os deputados não tinham o menor poder
sobre os órgãos do Estado". Completou:
"Ninguém deve negar
a própria biografia. E a minha vida pública sempre foi (...) pautada pelos
princípios republicanos que até hoje me guiam", disse, afirmando ter
aprendido que "liberdade e justiça" devem andar juntas.
Marin ainda ressaltou que, como governador, extinguiu o Dops de São
Paulo. Isso foi uma ordem do então presidente João Figueiredo. Quando o
departamento acabou, a abertura política estava próxima e aparelhos repressivos
perdiam a força. Estava perto do fim o período de "paz e
tranquilidade", nas palavras do atual cartola da CBF.
Questionada sobre a atuação do presidente do COL, José Maria Marin,
durante a ditadura, a Fifa afirmou que não tem nenhuma relação com essas
questões e não vê problemas com o cartola. "A Fifa não está em posição de
comentar sobre algo que é assunto interno do Brasil. Nós não estamos
qualificados para ter uma opinião em um assunto político que não tem relação
com as atividades da Fifa. A Fifa não tem questões com o presidente
Marin", disse o diretor de comunicação da entidade, Walter de Gregorio,
por e.mail.
Sugestão e comentários de Ernesto Sobocinski Marczal
O que dizer do conteúdo desta reportagem? O quanto ainda podemos nos surpreender
realmente com os vínculos políticos e ideológicos que se mantém a incontáveis
décadas nos quadros administrativos da principal entidade desportiva nacional? (Afinal
antes de se tornar a atual CBF, a antiga CBD tinha sob sua responsabilidade não
somente a gerencia do futebol no país...)
Parece-me, incialmente, que a publicação destes
relatos a partir da documentação levantada pelo portal UOL não constitui um
rompimento na trajetória dos dirigentes da entidade, mas revela os vínculos escusos
de mais um de seus integrantes. Afinal seria possível afirmarmos que João Havelange,
presidente da entidade desportiva durante a eclosão do golpe e nos “anos de
chumbo” que caracterizaram a ditadura durante o final da década de 1960 e
primeiros anos de 1970, presidente da FIFA e um dos principais articuladores do
Mundial de 1978 na Argentina, realizado sob
a tutela autoritária do Processo de Reorganização Nacional encabeçada por uma
Junta militar então liderada pelo general Videla, embora fora do governo
militar não compartilhasse de interesses e preceitos políticos-ideológicos
similares ou análogos aqueles perpetrados pelo regime? Ricardo Teixeira,
herdeiro consuetudinário, não desfrutou de anos de corrupção e de negociatas
escusas no interior da CBF?
Não se trata de reduzir o impacto do conhecimento
publico da trajetória e filiações políticas de Marin. Ao contrario, sua revelação
pode ser até mais chocante (de certo modo, nos pegamos pensando “até isso? Não é
possível?”. Não por que estejamos incrédulos, mas porque não queremos acreditar
que a envergadura do problema possa ser tamanha). Principalmente se lembrarmos
que sua ascensão ao cargo máximo da CBF ocorre diante dos escândalos, denuncias
e mobilizações que acarretam na decadência e relativa saída de Ricardo Teixeira,
justamente em um momento em que imperam as pressões pela transparência das
relações político-econômicas que regem a entidade e prezam pela idoneidade de
seus dirigentes.
A sensação que fica, a princípio, é antes de uma
continuidade nas relações há muito arraigadas no esporte nacional, do que de surpresa
por sua revelação. Da mesma maneira,
diante desta percepção resta também uma dubiedade em que, por uma lado, nos deparamos
com “verdades” (empregada aqui muito mais pela força do termo do que pela
ilusão sua validade discursiva) até então encobertas, e, por outro, com uma
reticente impotência em lidarmos com elas. Ou ainda, sob outra perspectiva, como nos portarmos / agirmos diante da permanência de um passado infiltrado do qual não gostaríamos
apenas de esquecer, mas extirpar de nossa vida política presunçosamente
democrática.
Entre as parcas certezas, o resgate dos enlaces destes
personagens civis (como assinalam alguns dos nossos colegas do Blog em nossas
conversas – Cidão, é com você mesmo...) reafirma sua importância como uma das necessidades
imperativas na investigação e revisão perspectiva dos momentos conturbados da “nossa”
ditadura. “Nossa” (a beira de completarmos 50 anos do golpe, nem por isso menos
presente / pertinente, quase que por procuração), por que mesmo quando mais nos
esforçamos para expurgá-la, ela insiste em nos perseguir com um novo pecado adormecido,
do qual, mesmo que inconscientemente, ainda não conseguimos nos livrar. Um
incômodo que se estende a nossa esfera futebolística, e, que apesar de Marin (em
2013!), não é apenas de agora... (Embora, ainda acredite que experimentamos um momento
propicio para começar a solucioná-lo!).
Obs: Como assinala o artigo, esta foi apenas a primeira reportagem com base na documentação levantada pelo portal. Fiquemos atentos às novidades subsequentes!