FUTEBOL EM MIUDEZAS
Por Jhonatan U Souza
A última edição
da revista Cândido, jornal da Biblioteca Pública do Paraná, é dedicada à obra
de Newton Sampaio, o primeiro autor moderno do Paraná, na acepção de Wilson
Martins. A revista reproduz dois contos de Sampaio: "Caco de Gente",
de 1939, e "Quinze Minutos", de 1938. Aproveitei a ida ao barbeiro -
em cabeleireiro não vou, por uma questão de princípios - para ler os contos.
O primeiro narra uma história
cruzada de dois personagens, de um lado Ricardo, um estudante que foi passar as
férias na fazenda dos pais, descrito por Sampaio como um: "Atleta
perfeito. Forte. Corado. Vendendo Saúde". De outro, Teca, uma agregada da
família, apelidada de "Caco de Gente", por seu corpo deformado: "Uma
ironia da natureza. Um ser que não devera ter nascido. O fantasma da sífilis
corporizado. Hereditariedade cruel que zombava de suas vítimas. Estatura
atrofiada. Um verdadeiro 'caco de gente". No conto, são dois corpos em
disputa, o atlético e o monstruoso. Um bom dilema para pensar os anos 1910 e
1920 em Curitiba, e as mudanças no modelo socialmente aceito de corpo.
Em "Quinze minutos", o
protagonista vai ao sapateiro, se depara com uma "radiosa mocinha"
sergipana, e lhe pergunta se conhece o escritor Tobias Monteiro, ela responde:
"-Em que time joga esse bicho?". A citação é periférica, mas remonta
a um debate que tomou Curitiba duas décadas antes da escrita do conto. Para
alguns, no período, o futebol e os futebolistas, estavam tomando o lugar que a
literatura e os literatos ocupavam anteriormente na cidade. Era o novo ponto de
referência para os jovens curitibanos.
Chegando em casa, depois de aparar o
cabelo - no barbeiro! - , resolvi assistir um filme. Escolhi Machuca, de Andrés
Wood, lançado em 2004. A película narra a história da relação entre Gonzalo, um
menino de classe média, e Pedro Machuca, um garoto pobre, que entra no tradicional
colégio Saint Patrick, onde Gonzalo estudava, por meio de uma política
educacional do governo Salvador Allende. A história é sobre os conflitos de
classe no Chile pré-golpe militar, mas as referências ao futebol são
constantes.
O primeiro foco em Machuca, espécie
de apresentação do personagem, acontece em uma cena em que o garoto domina uma
bola. Gonzalo e Machuca se conhecem no campo do colégio, quando o segundo
estava apanhando. Todas as vezes em que Gonzalo vai visitar a favela onde
Machuca morava, a primeira imagem que se vê é de um campo de terra batida,
cercado pelos Andes, que antecipa os casebres do local. A cena é linda, uma das
últimas do filme. A única referência que a película faz à postura internacional
diante do golpe militar, se dá em uma breve passagem, onde um homem lê no
jornal um pronunciamento da FIFA, no qual a entidade dizia ao mundo, que tudo
corria bem no Chile. No mesmo mês, o Estádio Nacional começava a receber seus
primeiros presos políticos, se convertendo em um verdadeiro campo de
concentração. A referência é uma clara crítica à FIFA.
Andrés Wood, se tornou conhecido no
mundo por sua primeira película, "Historias de Fútbol", de 1997, onde
narra a história de três jovens, por meio das quais explora as múltiplas
realidades desse esporte no Chile. Os campos de Machuca tem muito de
"Historias de Fútbol". Newton Sampaio, até onde sei, não escreveu
especificamente sobre o futebol ou os esportes em geral. Contudo, em
"Quinze Minutos" e "Caco de Gente", tal qual em
"Machuca", as referências ao esporte estão presentes.
No primeiro caso, é o sinal de que a
literatura produzida no Paraná na década de 1930, mesmo que de forma
periférica, já absorvia referências ao jogo. Talvez seja um traço do
"modernismo anacrônico", do qual falava Wilson Martins. No caso de
Machuca, ambientado no Chile de 1973, a popularidade do balompié é capitalizada
pelo diretor como recurso narrativo, forma de auto-citação e pretexto para
belas tomadas e para uma crítica mordaz à FIFA. Em ambos os casos, o futebol e
os esportes estão nas miudezas, o que não impediu que as referências a eles
marcassem minha apreciação das obras. Os campos dos arrabaldes de Santiago,
abraçados pelos Andes, e a imagem de Caco de Gente, a filha da sífilis, a
negação do corpo atlético, não saíram de minha cabeça desde então. Algumas
miudezas crescem com o olhar do historiador, não é recomendável despreza-las!