Os organizadores do livro "Gol de Letra: Crônicas Esportivas e Sociedade Brasileira", Miguel A. Freitas Junior e André Mendes Capraro, fazem um breve comentário sobre as crônicas e o sua utilidade para o estudo da sociedade e, brevemente, apresentam os autores dos textos selecionados e seus respectivos estudos.
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A crônica é um gênero literário que acendeu no Brasil no início do
século XIX, derivada dos populares folhetins.
Fortalecida com a fundação dos primeiros periódicos de ampla circulação na
Capital Federal, o Rio de Janeiro, e outras cidades como Recife, Salvador e São
Paulo. Mais do que a coincidência temporal, a crônica surgiu dentro das
próprias redações. Publicadas diariamente, tratavam-se neste início de
comentários pessoais, polêmicos ou jocosos de temáticas cotidianas (Candido et.
al., 1992: 14-15).
Definida como
uma mescla de literatura, jornalismo, vida social e cotidiana, sem um
compromisso mais perene com o fato, é
um dos poucos gêneros literários tipicamente brasileiros[1]. É
interessante observar que nos demais países o folhetim não se
transformou em crônica, aproximando-se mais do gênero conto. Uma hipótese
cabível para este fenômeno é que o leitor brasileiro de jornais se identificou
com o escrito, aceitando de forma mais pacífica o tom jocoso, satírico,
debochado e até certo ponto cruel, características típicas das crônicas.
O vínculo entre a crônica e os jornais – e posteriormente
as revistas – nunca se desfez.
Provavelmente, a crônica tenha surgido como uma necessidade de ajuste do campo
literário brasileiro. Explica-se: como o contingente populacional letrado era
significativamente pequeno[2], os
escritores brasileiros eram obrigados a buscar alternativas para obter seus
rendimentos. Desta forma, a crônica surge como um complemento à carreira dos
grandes nomes da literatura nacional.
Neste sentido, a crônica poderia ser considerada um gênero de grandeza
menor. Todavia, por mais paradoxal que seja, é exatamente neste ponto que
reside sua riqueza. Segundo Antonio Candido, “uma inesperada embora discreta
candidata à perfeição” (Candido et. al., 1992: 13).
A “perfeição” de Candido pode estar relacionada ao caráter eclético. Dos
mais variados movimentos e gêneros: do romantismo ao modernismo, da prosa à
poesia parnasiana, do realismo ao simbolismo, do teatro ao rádio, enfim,
escritores expoentes de todas as escolas literárias contemporâneas se dedicaram
à escrita do gênero crônica.
Valoriza-se então a diversidade, tanto de temas quanto de conteúdos
presentes no gênero crônica. Singela, enxuta, breve (o suficiente para que o
leitor fique ansioso para ler a próxima), recorrente (quase sempre, será
sucedida por uma próxima), a crônica guarda sua especificidade: tem um caráter
provisório, inacabado, de momentaneidade. Ao contrário do romance que apresenta
um desfecho após o clímax, ou do conto que não tem um sentido contínuo, a
crônica se auto-ajusta, pois, do presente (aquela que foi publicada hoje) se
expõem os pré-requisitos para as próximas que virão. Ela pode prender tanto
quanto um outro fenômeno cultural tipicamente brasileiro que iria surgir
décadas depois: as telenovelas[3].
A relação do esporte com a imprensa,
especificamente com a crônica esportiva escrita, desde o final do século XIX e
as primeiras décadas do XX, demonstra vínculos
interdependentes imprescindíveis para análises pautadas no binômio
sócio-cultural. Observando a interseção de tais campos – literário e esportivo
– visualizar-se-á, no transcorrer do século XX, um processo dinâmico, em
constante alteração, ligado a variadas e ecléticas questões importantes na
história da sociedade brasileira, como a transição de níveis sociais, a
assimilação de bens culturais europeus, o nacionalismo, a formação de
identidades, a autonomia da arte, a hegemonia esportiva do futebol, e a
profissionalização (tanto do esporte quanto da própria crônica especializada).
Constatada
a forte relação entre estes dois elementos substanciais na cultura brasileira,
o esporte e a crônica literária, é que se surgiu a idéia de organizar esta
coletânea. Realizando um estudo mais aprofundado no que tange a relação entre o
esporte e a literatura nacional, principalmente o futebol, modalidade esportiva
que detém a predileção dos brasileiros e também dos literatos esportivos. Tal
atitude justifica-se pelo fato de que estes temas geralmente, são pesquisados
de forma segmentada, pois, no caso da crítica literária, o esporte/futebol é
considerado apenas um assunto secundário na literatura nacional; da mesma maneira
que, no outro extremo, alguns pesquisadores da História e Sociologia do Esporte
utilizam os escritos literários como simples fontes para ilustrar o contexto esportivo/futebolístico, descaracterizando
a natureza da obra e as características do autor.
Esta
coletânea foi organizada a partir das discussões ocorridas em diferentes
congressos científicos das áreas de historiografia, antropologia e sociologia
do esporte. Nestes eventos percebeu-se que pesquisadores oriundos de diferentes
localidades do Brasil estavam abordando acontecimentos significativos na
história política, social e esportiva, tendo a crônica como principal fonte de
pesquisa.
Isto levou à percepção de que este
gênero literário, que durante muito tempo foi considerado uma fonte de consulta
de pouca importância, começava a conquistar o seu espaço, principalmente junto
aos pesquisadores das áreas de Ciências Humanas e Sociais, os quais
visualizaram neste tipo de documento uma possibilidade para compreender o
cotidiano de um determinado contexto social. Tal fato motivou os organizadores
a reunir tais pesquisadores e sistematizar as respectivas produções em um livro
que pudesse auxiliar os profissionais das diferentes áreas do conhecimento que
se preocupam com a análise da sociedade brasileira em diferentes momentos
históricos.
Diante da característica
didática que assume esta obra, optou-se em dividi-la em duas seções
interdependentes e complementares. Na primeira seção, intitulada “Aspectos históricos
da Crônica” o leitor irá encontrar cinco textos distintos que lhe
possibilitarão perceber a origem da crônica no Brasil, bem como o processo que
resultou na sua aceitação como fonte de pesquisa. É o que apresenta o
historiador Luiz Carlos Ribeiro, ao realizar uma abordagem conjuntural deste
gênero no contexto brasileiro. Partindo de uma leitura refinada do crítico
literário Antônio Cândido, Ribeiro explicita o lugar ocupado pela crônica no
campo literário e jornalístico, destacando a influência da crise de paradigma
vivenciada pela história (1970/80) como um fator que possibilitou a abertura do
campo de pesquisa para busca de outras fontes e objetos. Foi com base neste
contexto, que os pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento acabaram
redescobrindo toda a riqueza contida nas crônicas, bem como a possibilidade de
perceber as tensões e disputas de poder presentes na sociedade, através de
análises feitas no campo esportivo Diante destas novas possibilidades, o autor
chama a atenção para a necessidade dos pesquisadores tomarem alguns cuidados
metodológicos necessários para quem vai utilizar este tipo de documentação.
O
texto de Victor Andrade Melo apresenta a forma com que alguns literatos
relataram a introdução e a difusão do remo e do turfe, primeiras práticas
corporais a chamarem a atenção dos intelectuais que escreviam para os jornais
cariocas do final do século XIX. As crônicas daquele momento iam de encontro ao
objetivo dos periódicos, que era o de fornecer informações para os seus
leitores. Melo demonstra que os cronistas utilizaram as páginas dos jornais
para mostrar as transformações pelas quais estavam passando a sociedade e a
forma com que as novas práticas corporais estavam sendo incorporadas ao
cotidiano da sociedade. Este processo vai sendo re-atualizado e recebe um
tratamento significativo no texto de André Mendes Capraro, no qual o autor
mostra que no século XX a crônica se tornou um espaço de debate e disputa de
poder que permeou os campos literário e esportivo, fato que mantinha a atenção
dos leitores sempre ávidos para saber qual seria o desfecho da discussão
travada entre intelectuais de grande notoriedade. Além disso, o autor chama a
atenção para a questão do envolvimento dos cronistas com seus escritos, algo
típico de um gênero em que os limites para a criação não estavam bem definidos
e a proximidade dos escritores/torcedores com o objeto abordado era algo
bastante tênue. Diante desta passionalidade, o resultado quase sempre era um
acalorado debate expresso nas páginas dos jornais, no qual os sentimentos dos
literatos eram expressos de maneira áspera e direta, gerando inúmeras tensões e
ressentimentos.
Na
sequência do capítulo apresentou-se o texto de José Carlos Mosko. Este trata do
momento em que o pesquisador demonstra como se deu a aproximação da crônica com
as práticas esportivas, mas especificamente com o futebol. Não se trata de
encontrar um grande herói responsável por este acontecimento, mas sim de
verificar o processo tenso pelo qual os intelectuais brasileiros foram se
tornando adeptos deste gênero literário, que conquistou o público leitor, bem
como os escritores que tinham liberdade para apresentar as suas opiniões sobre
o seu time do coração, tendo como pano de fundo o debate ideológico em torno de
temas como identidade nacional, miscigenação, influência da cultura
estrangeira, entre outros assuntos que acompanharam a historiografia brasileira
durante todo o século XX. Em síntese, pode-se dizer que neste capítulo,
mostrou-se o processo pelo qual a crônica se tornou um meio de difusão de
idéias e projetos de alguns grupos intelectuais brasileiros.
Por último, a pesquisadora Natasha Santos
apresenta uma análise bastante criativa das crônicas de Nelson Rodrigues acerca
do futebol. Jornalista, teatrólogo e escritor renomado, na mesma proporção em
que era polêmico, Nelson Rodrigues foi um analista atento do futebol. E, como
poucos, sob o interpretar sob a ótica da sua representatividade como elemento
da cultura brasileira. Por meio da análise das fontes, Santos acentua o quanto
a popularidade de Nelson Rodrigues contribuiu para reforçar o ideal de
identidade nacional formulada por Gilberto Freyre e amplamente difundida por
Mario Filho.
O segundo capítulo fornece
alguns exemplos práticos de como se trabalhar com a crônica esportiva, para
isto foram utilizados três estudos que tratam de momentos marcantes na história
esportiva, social e política do Brasil. O primeiro deles refere-se a Copa do
Mundo de 1950, que foi realizada no próprio país, no qual a derrota do selecionado
nacional frente ao olhar atônito de 200 mil pessoas, foi algo tão significativo
que até hoje permanece no imaginário coletivo, reforçando muitos mitos criados
pelos cronistas daquele momento. Esta foi a tônica do texto apresentado por
Miguel Archanjo de Freitas Jr, no qual o pesquisador foi mostrar a consolidação
da “cultura da desculpa” como uma estratégia discursiva para tentar minimizar o
fracasso de uma nação que desejava ser vitoriosa, moderna e forte, mas que sucumbiu
no momento decisivo, trazendo à margem muitas das questões culturais que eram
mal resolvidas na sociedade brasileira, as quais foram utilizadas pelos
cronistas muitas vezes de forma romanceada, para fazer com que os brasileiros
continuassem acreditando que o Brasil era o país do futuro.
Este acontecimento também
foi abordado pelos uruguaios, país campeão daquela Copa do Mundo e que tem a
sua visão apresentada no estudo desenvolvido por Álvaro Vicente do Cabo, o qual
analisou as crônicas produzidas pelos orientais com intuito de perceber a forma
com que eles relataram o mesmo acontecimento, ou seja, buscou-se apresentar a
representação dos vencidos e também dos vencedores. A comparação das
representações criadas em diferentes lugares e por diferentes atores, pode
auxiliar na compreensão simbólica das construções discursivas, bem como
identificar a formação da alteridade enquanto um elemento de afirmação
nacional. Em seu estudo, Álvaro demonstra que a imprensa uruguaia jamais deixou
de acreditar na “raça charrua”, um dos fatores que posteriormente foi
mitificado pela imprensa daquele país, como sendo um dos principais elementos
que levou a seleção uruguaia ao título. Analisar a forma com que a imprensa dos
dois países diretamente envolvidos na disputa representaram a vitória e a derrota
dos seus selecionados é uma estratégia interessante para perceber a circulação
das ideias, fator significativo para a compreensão do processo de construção
das identidades a partir da forma com que se representa o outro.
O texto escrito por Euclides Freitas Couto analisa as influências do regime militar sobre as
representações criadas pela grande imprensa em torno do selecionado brasileiro
de futebol, durante o período de 1966 e a vitória na Copa do Mundo de 1970. O
autor questiona o fato de que o selecionado nacional tenha vencido este evento
graças aos esforços realizados pelo governo militar, ou como afirmava a grande
imprensa da época, o resultado foi decorrente dos dotes individuais e naturais
das feras de Saldanha. Ao investigar as relações sociais do futebol brasileiro
num momento de forte pressão política Euclides revela que neste microcosmo
foram travados diferentes embates,
decorrentes principalmente das visões de mundo apresentada pelos atletas e os
projetos identitários almejado pelos cronistas da grande imprensa que sofreram
forte influência das novas ideologias que contagiavam o imaginário social em
tempos de ditadura militar.
Política, cultura, ideologias,
identidades, ditadura e sentimentos conflituosos são elementos presentes nas diferentes
abordagens que compõe esta coletânea. Eles nos ajudam a refletir os meandros do
futebol nacional e as questões políticas recorrentes que envolvem a sociedade
brasileira, num constante movimento dialético entre razão e paixão.
Miguel A. de Freitas
Jr
André Mendes
Capraro (orgs.)
[1]
Além da crônica, outro gênero tipicamente nacional é a literatura de cordel.
Maiores detalhes ver: Costa, Cristina. A Milésima Segunda Noite: da
narrativa mítica à telenovela análise estética e sociológica. São Paulo:
Annablume, 2000. (especificamente p. 126-131).
[2] Oíndice de alfabetizados no Brasil em
1872 era de 1.56% e, quase quarenta anos depois, em 1920, ainda se mantinha
baixo: 7.49%.
[3] Para maior compreensão sociológica do
assunto vale a pena cf.: Sodré, Muniz. O monopólio da Fala: função
e linguagem da televisão no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1984.