O futebol na Primavera Árabe
por Mestrando Jhonatan Souza (UFPR)
Era
quarta-feira em Port Said e não era uma quarta-feira qualquer! Vencer de virada
por 3 a 1 uma partida contra o poderoso Al-Ahly Cairo não fora tarefa simples
para o time do Al-Masry. Entretanto, o que aconteceria nos minutos finais do
jogo encobriria o feito, manchando de sangue a vitória do clube local.
Quando,
nos minutos derradeiros da partida, torcedores do Al-Marsy invadiram o campo em
caçada a seus rivais, provocando a morte de 74 pessoas e dezenas de feridos - tudo
sob o olhar displicente do parco policiamento - jornalistas de todo o mundo se
perguntavam: "o que esta acontecendo?" Quando no dia seguinte, as
torcidas do Al Ahly e do Zamalek marcadas pela rivalidade, detentoras de
identidades supostamente inconciliáveis, marchavam de mãos dadas nas ruas do
Cairo, cantando para a deposição da junta militar de transição e em defesa da
punição dos responsáveis (incluindo ai as forças de segurança) pela tragédia de
Port Said - entendida de imediato como uma represália ao engajamento dos
torcedores do Al-Ahly nas manifestações da praça Tahrir - os analistas mais
ortodoxos devem ter se perguntado: O que fazem esses torcedores à rua? Por que
cantam palavras de ordem políticas e não os hinos dos seus clubes? Ou melhor,
por que os hinos de seus clubes ganharam conotações políticas? Em outros
termos: Porque não se comportam como a teoria determina? Será que fazem de
propósito? Será que querem acabar com meus esquemas explicadores?
A perplexidade de alguns analistas
frente aos eventos de fevereiro em muito se assemelha aos primeiros comentários
e reportagens sobre a chamada "Primavera Árabe" e são exemplares da
necessidade de revermos alguns de nosso conceitos mais caros. Os eventos de
2011 trazem à tona, novamente, o debate sobre o papel político que o futebol
tem desempenhado em diversos contextos históricos e chama a atenção para a
necessidade gritante de pensarmos as relações políticas para além dos lugares
clássicos, dos partidos, sindicatos, etc. As análises sobre os eventos
coetâneos, tem identificado uma série de espaços onde foram gestados os ideias
de mudança, dos cafés tradicionais do Cairo aos estádios de futebol, das
universidades aos estudos teológicos, e uma pluralidade de mecanismos de
divulgação dos protestos, da internet à televisão, dos torpedos sms ao
tradicional boca a boca, de convocações de instituições religiosas à
convocações de torcidas organizadas. Entretanto, as análises nesse sentido, tem
restringido seu olhar ao caso egípcio, ao lado desse país, na Líbia, uma caso
interessante de relação entre futebol e política merece ser estudado mais a
fundo.
Temos ciência que o termo
"Primavera Árabe" é demasiado amplo e esconde uma diversidade de
processos que, muitas vezes, guardam mais diferenças que semelhanças entre si.
O caso líbio é exemplar nesse sentido, por se configurar enquanto uma guerra
civil clássica, com direito à intervenção da OTAN e suporte estrangeiro à
oposição. Entretanto, acreditamos que essas colocações não são suficientes para
a compreensão do processo, e entendemos que um "olhar pelos gramados"
pode dar-nos pistas interessantes para a compreensão da sociedade líbia e de
suas tensões internas. Ao que tudo indica, desde o processo de independência,
organizações de jovens e recreativas, tem desempenhado um papel importante
nesse país e após a chegada de Kadafi ao poder, essa situação ganhou nova
roupagem. Em seu "Livro Verde", que durante muito tempo foi entendido
como a sustentação teórica do regime, o líder político dedica algumas palavras
aos esportes na parte intitulada "Desporto, equitação e espetáculo",
onde tece duras criticas aos processo de espetacularização dos esportes, à
divisão entre jogador e expectador e a algumas modalidades em específico, como
o boxe e os esportes de luta. A despeito de suas críticas, a família Kadafi
tornou-se, com o tempo, uma grande investidora no mundo futebolístico,
controlando grande parte dos clubes locais e investindo em clubes europeus como
as equipes italianas Juventus e Triestina e chegando mesmo a tentar comprar o
Milan, do velho amigo Berlusconi. Além dos clubes locais, a federação de
futebol e o comitê olímpico líbio estiveram, como outras instâncias de poder,
nas mãos de filhos do ditador.
Falando em filhos, uma trajetória
que merece ser estudada é a de Saadi Kadafi, o filho-boleiro do ditador, que
jogou em alguns dos melhores clubes locais como o Al-Ahly Trípoli e o
Al-Itthad, teve cadeira cativa na seleção da Líbia, chegou a "jogar"
em alguns clubes italianos e, ao se aposentar, assumiu o controle da federação
líbia, sendo um dos principais parceiros de Blatter na África durante as
eleições para a FIFA em 2002, o que estimulou a Líbia a concorrer conjuntamente
com a Tunísia - outro país atingido pela primavera - para sediar a copa do
mundo de 2010. Entretanto, não devemos pensar as relações de poder de forma
unilateral, se é verdade que o Estado líbio interviu no futebol, utilizando-o
muitas vezes como propaganda do regime, o caminho oposto também foi percorrido,
e dos gramados assistimos a estalos de subversão à ordem estabelecida. Nesse
sentido, vale estudar as manifestações contrárias à presença de Saadi Kadafi no
futebol, e as manifestações contra o favorecimento que alguns árbitros
supostamente davam ao time do filho do ditador, essas manifestações que
começavam com questionamentos próprios do universo futebolístico, não raras
vezes, ganhavam conotações políticas, desembocando em criticas ao regime
político e terminando em repressão policial e morte. A rivalidade entre os
clubes do Cairo e de Benghazi é outro capítulo interessante dessa história, que
chegou ao ponto de o Al-Ahly Benghazi ter seu estádio demolido por determinação
do governo. Vale ainda ressaltar, que durante a guerra civil, os prédios da
Federação de Futebol e do Comitê Olímpico, foram um dos primeiros a serem
invadidos e depredados pelos opositores.
De fato, são inúmeras as
possibilidades de pensar a Líbia por meio dos esportes. No plano das relações
internacionais, o apoio ao atentado nas olimpíadas de Munique, a fundação do
Hugo Chavez Stadium, as relações com as famílias Agnelli e Berlusconi na
Itália, a disposição em sediar competições internacionais, etc. Durante a
própria guerra civil, as deserções de jogadores da seleção líbia para Benghazi,
a ocupação do Hugo Chavez Stadium rebatizado de "Mártires de
fevereiro" pelos opositores ao regime e a posterior participação do país
na Copa Africana de Nações, pós-deposição de Kadafi, dão-nos a medida das
relações estabelecidas entre futebol e política nos eventos contemporâneos. Essa
relação sobreviveu até os últimos instantes do regime e dias antes das forças
de oposição ocuparem o palácio do governo, tendo a maior parte das grandes
cidades sob controle dos rebeldes e o espaço aéreo do país ocupado pela OTAN,
Kadafi, em uma clara tentativa de legitimar seu governo internacionalmente,
convidou o excêntrico presidente da Federação Internacional de Xadrez, Kirsan Ilyumzhinov, para uma partida em
Trípoli. O convite foi aceito e a partida terminou empatada. Sorridente, Kadafi
protelava por mais alguns dias o inevitável xeque-mate.
fonte: http://portal.uepg.br/noticias.php?id=2827
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