General Videla entregou a taça da Copa do Mundo para Daniel Passarella em 78
Morto na última sexta-feira, o ditador Jorge
Rafael Videla foi um dos principais personagens do Mundial mais controverso da
história. À frente da Argentina entre 1976 e 1981, usou a Copa do Mundo de 78,
organizada no país e vencida pela seleção local, como propaganda de um governo
responsável pela morte de 30 mil pessoas.
Muitas
dessas vítimas foram torturadas e executadas na sede da ESMA (Escola de
Mecânica da Armada), cujo o prédio fica a 10 quadras do estádio Monumental de
Nuñez, onde a seleção argentina venceu a partida final a Copa, sobre a Holanda,
já sem Cruyff, por 3 a 1. A proximidade geográfica entre os locais é vista por
muitos argentinos hoje como uma metáfora do que foi aquele Mundial: quando
milhões de torcedores vibravam de alegria com a vitória do futebol local
enquanto milhares de presos eram torturados e mortos.
“O tema
dos desaparecidos naquela época não era midiático. Era escondido, restrito para
famílias e vítimas da ditadura”, lembra o jornalista Guillermo Blanco, que
cobriu o Mundial pela revista "El Gráfico".
A imagem do bigodudo Videla ao lado do já senhor, mas sempre atlético, João Havelange na tribuna de honra do Monumental de Nuñez no dia da final simboliza a proximidade dos dois. Foi na década de 70 que o cartola criou o modelo lucrativo de uma Copa patrocinada por empresas privadas, como a Coca-Cola, mas também majoritariamente bancada pelos governos dos países-sedes.
“Não se tem notícia de que Videla era um fã de futebol. Foi algo por conveniência política aquelas imagens dele comemorando os gols da seleção”, afirma Guillermo Blanco. Em raras entrevistas, o ditador revelou ter simpatia pelo Independiente, clube popular de Avellaneda, em Buenos Aires. “Ao usar o futebol, tampouco foi original. De longe, não foi o único ditador a se aproveitar do esporte”, completa.
Do general, Havelange ouviu “sim” quando quis e, seguindo o seu pragmatismo nas relações políticas, tampouco disse “não” para a utilização do torneio como propaganda de um regime ditatorial.
“Quando cheguei à Fifa, quem decidiu que a Copa ia ser na Argentina não fui eu nem o Comitê Executivo. Foi o Congresso [da Fifa], e você não pode mudar uma decisão do Congresso. Pode falar o que quiser. Eu só apertei o governo anterior, que era da senhora do Perón [Isabelita]”, contou o cartola em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, em 2008.
A escolha da Argentina como sede do Mundial, é verdade, aconteceu antes de Havelange e Videla chegarem ao poder. Foi em 1966. O brasileiro assumiu a presidência da Fifa em 1974 e o general tomou o governo da Argentina dois anos depois, em 1976, após um golpe militar.
Havelange e Videla
“Fui
ver o presidente Videla, não o conhecia. Ele me disse: "Senhor Havelange,
não vou lhe dar a melhor Copa, mas vou lhe dar uma das melhores, pode estar
certo". E fez tudo”, disse Havelange.
JOGADORES NEGAM QUE REGIME DITATORIAL AJUDOU TÍTULO DA
ARGENTINA
Se o uso do Mundial como propaganda da ditadura
é quase uma unanimidade entre os argentinos, a tese de que Videla influenciou
no resultado do torneio encontra resistências, principalmente entre “boleiros”
e torcedores. “Não fazia política, fazia gols. E só na final, contra a Holanda,
marquei dois. Dizer que tivemos ajuda de alguém é uma bobagem”, contesta o
artilheiro daquela Copa, Mario Kempes.
Paradoxalmente, os jogadores argentinos eram
treinados por Cesar Menotti, técnico de conceitos e discurso arrojados e que
sempre se disse um socialista.
“Todos os presos políticos, os perseguidos, os
torturados e os familiares dos desaparecidos estavam esperando que Menotti
dissesse algo, que tivesse um gesto solidário, mas não disse nada. Ele também
estava fazendo política com o seu silêncio”, afirmou Adolfo Pérez Esquivel,
prêmio Nobel da Paz em 1980, que conseguiu ser liberado de uma prisão argentina
graças à pressão internacional, no dia 23 de junho de 1978, dois dias antes da
final do Mundial.
“É provável que tenha sido permissivo de ter
aceitado diálogo com pessoas que não deveria. Isso me irrita muito. Mas fui
muito leal com o meu time e a minha gente”, se defende Menotti.A principal suspeita de influência do governo
local no resultado do torneio recai sobre o jogo que levou a Argentina para a
final, a goleada por 6 a 0 sobre o Peru. Ramón Quiroga, argentino naturalizado
que defendia o gol peruano, disse em 1998 que ele e seus companheiros receberam
dinheiro para entregar o jogo. Depois recuou.
Outro peruano que esteve na derrota, o atacante
Oblitas revelou que o time recebeu a visita de Videla no vestiário antes do
jogo. “Veio nos cumprimentar. Com ele estava nada mais nada menos que o
secretário de Estado dos Estados Unidos, Henry Kissinger”, disse.
Fonte: http://esporte.uol.com.br/futebol/ultimas-noticias/2013/05/18/defendido-por-havelange-videla-usou-copa-em-prol-da-ditadura-argentina.htm
Sugestão e comentários de Ernesto Sobocinski Marczal
Entre as inúmeras recordações suscitadas pela morte
do general ditador Jorge Rafael Videla, no cárcere na última semana, está o
Campeonato Mundial de 1978, sediado e vencido pela Argentina em meio a violenta
ditadura processita. A brutalidade do
regime instituído em 1976 já era demasiada notória no momento de realização da
competição, as condições político-sociais vivenciadas no país platino estavam
longe de figurar como algo incógnito, de modo que a simples prerrogativa do
desconhecimento soava falsa e insuficiente. Assim, pode-se compreender o
mundial da Argentina como um evento que ocorreu a despeito de seu contexto
político, já que era praticamente impossível aos seus participantes negá-lo, por
mais que demover as acusações dos organismos internacionais e remodelar a imagem
do país consistissem em alguns dos objetivos primeiros projetados pela junta
militar sobre a organização da competição.
Assim, sem dúvida, a Copa de 1978 foi um dos
momentos de maior controvérsia na relação entre esporte e política, exemplo das
possibilidades de uso político da modalidade esportiva, em muitos aspectos
coerentes com a leitura restritiva do “ópio do povo”, cujo potencial permitiria
a manipulação deliberada da massas populares, absorta nos efeitos inebriantes
do jogo da bola, por parte de um Estado
e autoritário considerado friamente pragmático e racional. Uma prova cabal da
supremacia da suposta racionalidade e lucidez política ante a imponderabilidade
da passionalidade capaz de transformar os cidadãos em uma reles turba, ignara e
inconsciente de seu papel político e social. Quase como se fosse possível obter
uma explicação irredutivelmente lógica para as próprias ações que conduziram o
Processo a constituir sua infindável relação de mortos, presos, torturados e
desaparecidos. Tanto quanto o mundial, a ditadura também fora movida por
paixões – ódios, temores, ressentimentos – que colocaram em movimento seus
responsáveis, assim como o esporte colocara em movimento a população nas ruas
das cidades ante a conquista caseira do título. Embora capitalizasse a vitória em
seu favor, não era o regime militar local que mobilizava a população, mas sim a
relação passional que detinham com o futebol como elemento de representação
legitima de sua nacionalidade.
E nem mesmo esta relação ficaria sem ser imaculada
pela ditadura. Não bastassem os abusos autoritários e repressores do processo,
que perseguem a memória dos argentinos, as suspeitas levantadas em torno da
campanha que levou a seleção local a conquista do caneco destituíram grande
parte do significado do evento que o desarticularia, ao menos em parte, do duro
quadro político e social do regime. Nem mesmo o mérito da disputa esportiva
vivenciada nos gramados poderia ser atribuída somente a seleção e a população
argentina. A própria vitória só fora obtida por meio da intervenção do Processo.
Mesmo que esta perspectiva não esteja sedimentada (e não me arrisco aqui a
firmar um falso veredito), a desconfiança gerada pela suspeição se torna
suficiente para roubar um dos parcos pontos de pureza resguardada sobre o
mundial: o resultado obtido dentro de campo.
O primeiro título mundial, conquistado em casa, se
esvai sob uma memória polissêmica, de muitas formas, culpada e ressentida. Ressentida
pelos anos de abuso e violência da ditadura, em que a lembrança dos milhares de
desaparecidos se torna recorrente, sobretudo, através das organizações de mães
e avós que transformam a plaza de mayo
em Buenos Aires um monumento vivo de reminiscência e protesto. Culpada, pela
sensação de participação e anuência com o regime desperta pelo mundial organizado
sob os auspícios do governo militar. Sem a candidez do mérito esportivo, um dos
parcos alentos aos milhares de argentinos que tomaram as ruas em 1978, os resquícios
de orgulho se convertem em vergonha e a Copa de 1978 se decompõe em chaga da
ditadura. Em outros termos, uma recordação de Videla.