E o Oscar vai para...
A situação envolvendo o jogador de futebol Oscar equivale
à conhecida prática da escravidão por dívida, legalizada no Brasil no
período da imigração européia, quando se considerava crime o fato do
imigrante deixar, ou, mais propriamente, fugir da fazenda antes de pagar
a dívida que tinha com o dono da fazenda. O caso do Oscar é ainda mais
grave porque mesmo que este proponha pagar a dívida, o seu “dono” não o
quer libertar. Essa analogia é pertinente até para refletir sobre o fato
de que as relações de trabalho no futebol ainda guardam muito da lógica
escravagista. O artigo é de Jorge Luiz Souto Maior*.
A conhecida frase acima virou tradição no
maior evento do cinema. O Oscar, de fato, é uma estatueta, uma coisa,
que simboliza a premiação do trabalho realizado em nome da arte
cinematográfica.
O que estamos presenciando no debate entre o São Paulo e o Internacional, no entanto, é uma inversão plena de valores. De fato, o homem, o Oscar, foi transformado, ele próprio, na coisa, na estatueta, que será entregue a um dos dois clubes não como reconhecimento de um trabalho realizado, mas para satisfação de um interesse econômico, fixado em um contrato.
Imaginemos a cena: o representante de um dos clubes fazendo o gesto de levantar, orgulhoso, a estatueta, o Oscar, e agradecendo, na seqüência, aos advogados e juízes, que souberam decifrar as cláusulas do contrato.
Sem entrar nos meandros dos termos contratuais, sem me posicionar, portanto, quanto a quem tem, ou não, razão nesta contenda, o que me parece inegável é que, de modo algum, essa discussão jurídico-formal pode conduzir ao efeito que ora se verifica de uma pessoa ser tratada como posse de alguém, e, pior, como uma coisa, um troféu que se possa erguer e, com isso, ser impedida de exercer um direito fundamental, que é o direito ao trabalho.
Em concreto, juridicamente falando, visualizando o Direito na perspectiva da proteção da condição humana, uma questão patrimonial, fixada em um contrato, não pode se constituir como fundamento para impedir o pleno exercício de um direito fundamental, que está ligado, inclusive, à noção básica da liberdade.
A consideração jurídica de que o Oscar “pertence” ao São Paulo, ou ao Internacional, é, portanto, totalmente ineficaz no aspecto da limitação do direito ao trabalho. Não é possível, por exemplo, que um Oficial de Justiça, por ordem judicial, pegue o Oscar e o conduza, à força, até um local determinado e o obrigue a treinar e a jogar. Do mesmo modo, não é possível que o efeito contratual, patrimonial, mesmo sem o necessário adimplemento, impeça alguém de exercer a sua liberdade.
Sem exagero, a situação equivale à conhecida prática da escravidão por dívida, que fora, até, legalizada no Brasil no período da imigração européia, quando se considerava crime o fato do imigrante deixar, ou, mais propriamente, fugir da fazenda antes de pagar a dívida que tinha com o dono da fazenda, sendo que a dívida em questão advinha do custeio da própria imigração e, depois, do valor devido pelo alojamento e pela alimentação concedidos na fazenda, sendo que o valor pago pelo trabalho era sempre menor que o montante da dívida que crescia diariamente.
O caso do Oscar é ainda mais grave porque mesmo que este proponha pagar a dívida, o seu “dono” não o quer libertar...
Essa analogia é pertinente até para refletir sobre o fato de que as relações de trabalho no futebol ainda guardam muito da lógica escravagista, na qual o trabalhador (o jogador) é dito como um patrimônio de seu dono (o clube), o qual se vê, inclusive, legitimado para exigir condutas, modos de agir e até de pensar por parte do jogador, chegando a interferir no seu direito de manifestação, atingindo, quase que por completo, a sua vida privada.
Os negócios no futebol, porque envolvem muito dinheiro, cegam as pessoas, gerando deturpações valorativas muito graves, a ponto do jogador ser entendido como o objeto do contrato que se realiza por terceiros interessados (os clubes) e não como sujeito.
Não é possível, repito, impedir alguém de exercer um direito fundamental sob o argumento de que há um direito patrimonial pendente.
No caso concreto, a solução só pode ser pensada a partir da vontade do jogador, conferindo-lhe a necessária liberdade para exercer seu direito fundamental de trabalhar, de praticar seu ofício, de se conceber, enfim, como um autêntico ser humano, o que não representa negligenciar as eventuais repercussões patrimoniais (que não me proponho a analisar neste texto) que possam advir de seu ato, mas que, mesmo sem solução, repito, não constituem empecilho à efetividade dos Direitos Humanos.
Em suma: o Oscar, a estatueta, vai para quem a Academia considerar que o mereça. O Oscar, o cidadão, vai para onde ele quiser!
(*) Graduação em Direito pela Faculdade de Direito Sul de Minas (1986), Mestrado (1995) e Doutorado (1997) em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Pesquisa, em nível de pós-doutorado, realizada na França em 2001, financiada pela CAPES, sob orientação do Prof. Jean-Claude Javillier, professor da Universidade de Paris-II. Atualmente é professor livre docente da Universidade de São Paulo. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito do Trabalho, atuando principalmente nos seguintes temas: Direito do Trabalho, Teoria Geral do Direito do Trabalho, História do Direito do Trabalho, Direitos Humanos, Processo do Trabalho e Justiça do Trabalho.
O que estamos presenciando no debate entre o São Paulo e o Internacional, no entanto, é uma inversão plena de valores. De fato, o homem, o Oscar, foi transformado, ele próprio, na coisa, na estatueta, que será entregue a um dos dois clubes não como reconhecimento de um trabalho realizado, mas para satisfação de um interesse econômico, fixado em um contrato.
Imaginemos a cena: o representante de um dos clubes fazendo o gesto de levantar, orgulhoso, a estatueta, o Oscar, e agradecendo, na seqüência, aos advogados e juízes, que souberam decifrar as cláusulas do contrato.
Sem entrar nos meandros dos termos contratuais, sem me posicionar, portanto, quanto a quem tem, ou não, razão nesta contenda, o que me parece inegável é que, de modo algum, essa discussão jurídico-formal pode conduzir ao efeito que ora se verifica de uma pessoa ser tratada como posse de alguém, e, pior, como uma coisa, um troféu que se possa erguer e, com isso, ser impedida de exercer um direito fundamental, que é o direito ao trabalho.
Em concreto, juridicamente falando, visualizando o Direito na perspectiva da proteção da condição humana, uma questão patrimonial, fixada em um contrato, não pode se constituir como fundamento para impedir o pleno exercício de um direito fundamental, que está ligado, inclusive, à noção básica da liberdade.
A consideração jurídica de que o Oscar “pertence” ao São Paulo, ou ao Internacional, é, portanto, totalmente ineficaz no aspecto da limitação do direito ao trabalho. Não é possível, por exemplo, que um Oficial de Justiça, por ordem judicial, pegue o Oscar e o conduza, à força, até um local determinado e o obrigue a treinar e a jogar. Do mesmo modo, não é possível que o efeito contratual, patrimonial, mesmo sem o necessário adimplemento, impeça alguém de exercer a sua liberdade.
Sem exagero, a situação equivale à conhecida prática da escravidão por dívida, que fora, até, legalizada no Brasil no período da imigração européia, quando se considerava crime o fato do imigrante deixar, ou, mais propriamente, fugir da fazenda antes de pagar a dívida que tinha com o dono da fazenda, sendo que a dívida em questão advinha do custeio da própria imigração e, depois, do valor devido pelo alojamento e pela alimentação concedidos na fazenda, sendo que o valor pago pelo trabalho era sempre menor que o montante da dívida que crescia diariamente.
O caso do Oscar é ainda mais grave porque mesmo que este proponha pagar a dívida, o seu “dono” não o quer libertar...
Essa analogia é pertinente até para refletir sobre o fato de que as relações de trabalho no futebol ainda guardam muito da lógica escravagista, na qual o trabalhador (o jogador) é dito como um patrimônio de seu dono (o clube), o qual se vê, inclusive, legitimado para exigir condutas, modos de agir e até de pensar por parte do jogador, chegando a interferir no seu direito de manifestação, atingindo, quase que por completo, a sua vida privada.
Os negócios no futebol, porque envolvem muito dinheiro, cegam as pessoas, gerando deturpações valorativas muito graves, a ponto do jogador ser entendido como o objeto do contrato que se realiza por terceiros interessados (os clubes) e não como sujeito.
Não é possível, repito, impedir alguém de exercer um direito fundamental sob o argumento de que há um direito patrimonial pendente.
No caso concreto, a solução só pode ser pensada a partir da vontade do jogador, conferindo-lhe a necessária liberdade para exercer seu direito fundamental de trabalhar, de praticar seu ofício, de se conceber, enfim, como um autêntico ser humano, o que não representa negligenciar as eventuais repercussões patrimoniais (que não me proponho a analisar neste texto) que possam advir de seu ato, mas que, mesmo sem solução, repito, não constituem empecilho à efetividade dos Direitos Humanos.
Em suma: o Oscar, a estatueta, vai para quem a Academia considerar que o mereça. O Oscar, o cidadão, vai para onde ele quiser!
(*) Graduação em Direito pela Faculdade de Direito Sul de Minas (1986), Mestrado (1995) e Doutorado (1997) em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Pesquisa, em nível de pós-doutorado, realizada na França em 2001, financiada pela CAPES, sob orientação do Prof. Jean-Claude Javillier, professor da Universidade de Paris-II. Atualmente é professor livre docente da Universidade de São Paulo. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito do Trabalho, atuando principalmente nos seguintes temas: Direito do Trabalho, Teoria Geral do Direito do Trabalho, História do Direito do Trabalho, Direitos Humanos, Processo do Trabalho e Justiça do Trabalho.
Fonte: http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=20034
Texto sugerido e comentários abaixo de Jhonatan Uewwerton Souza.
Não haveria dia mais sugestivo para um post
inaugural que um 1o de Maio. Dia do TRABALHADOR, como a consciência
não nos deixa esquecer, e não do trabalho (como as elites tentaram ensinar). Não
haveria, também, temática mais apropriada para esse dia, que a das relações de
trabalho no futebol. Tema ardiloso, recheado de polêmicas e permeado pela ética
do silêncio.
A
disputa, entre São Paulo e Internacional, pela "posse" do jogador
Oscar, reacende a discussão sobre a dupla identidade do futebolista (pessoa/coisa,
trabalhador/mercadoria) e sobre os possíveis resquícios de escravidão (um dos
argumentos usados pela defesa de Oscar), que abarcaria, essa condição de
mercadoria. Como lembra Arlei Damo em "Do Dom à Profissão": "A
mercadorização dos futebolistas é parte importante no processo de emergência e
consolidação da própria profissão, sendo que o duplo estatuto de pessoa e coisa
tornou-se um dos elementos constitutivos da identidade social destes
profissionais" (p.341). Desse modo, o que acontece quando um jogador
resolve romper com essa condição em busca de sua plena emancipação? O
"caso Oscar" pode nos dar pistas nesse sentido.
O
texto do professor Souto Maior, traz inúmeras contribuições ao debate, e
levanta questões paralelas a serem pensadas, articulando esse caso em
específico, com outras dinâmicas do tempo presente em um exercício de jogos de
escala. Nesse sentido, poderíamos pensar, a partir do "caso Oscar",
na relação entre os Direitos Humanos (no caso, um direito fundamental, o
direito de trabalho) e o Direito Patrimonial (questão essa, que também esteve
em jogo em um outro caso de repercussão nacional, o da Ocupação do Pinheirinho).
A relação entre práticas internacionais, nesse caso avalizadas pela FIFA, uma
organização supranacional, e a Soberania Nacional (questão fundamental para
entender a recente discussão do STF sobre a Lei da Anistia). E, sobretudo, o
texto nos instiga à tarefa fundamental e inadiável, de rompermos com os
estereótipos estabelecidos e humanizarmos a figura do jogador de futebol,
considerando-o um trabalhador e não o depositário emocional de nossas
frustrações clubísticas. Humanizar a coisa, emancipar o trabalhador, eis uma
tarefa digna de um 1o de Maio.