sexta-feira, 9 de maio de 2014

Crônica da Semana
O torcer das almas: o futebol e os ritos de morte
            Jhonatan Uewerton Souza
           
            Alma torce? Fui tomado por essa indagação enquanto passeava por um cemitério campal. Gosto de observar as decorações nas sepulturas, de alguma maneira, o vivo que decora - a menos que o defunto tenha especificado os ornamentos do jazigo em testamento - imprime no morto uma narrativa daquela trajetória que se encerra. Até pouco tempo, essas decorações se resumiam em flores, imagens sagradas, fotografias do sepultado e, quando muito, epitáfios. Atualmente, com a flexibilização das regras em alguns cemitérios, o número de objetos de decoração foi multiplicado, estimulando o desenvolvimento de um mercado de produção e comercialização de ornamentos fúnebres. Nesse novo cenário, são comuns os enfeites que evocam determinadas identidades, servindo como apresentações à sociedade daquele que repousa em morte, junto com as informações clássicas, como o nome, a da data de nascimento e falecimento, e a fotografia.
            Num dos túmulos, os vivos fizeram questão de sublinhar o pertencimento do morto a um determinado ofício, nele lia-se: "Construí casas para os homens na terra e Deus construiu no céu, uma mansão para mim". Em outras sepulturas, aspectos distintos da vida do defunto eram evocados. Com alguma surpresa constatei que, em um número significativo de covas, havia pequenas plaquetas fincadas na grama, com os distintivos dos clubes de futebol adorados pelos sepultados. Nesses casos específicos, normalmente entre homens, a identidade clubística era alçada, pelos vivos, ao estatuto de identidade social fundamental daquele que jazia, um ponto de referência e resumo de vida, um dado biográfico essencial.
            Ali, onde o corpo não é mais o local por excelência de expressão do torcer, é que a identidade clubística parece demonstrar sua força. Ao projetar a persistência do ato de torcer para além dos limites da vida, os vivos parecem depositar no morto suas esperanças de infinitude. Essa vontade de eternidade expressa na crença de que o sujeito continua a torcer mesmo depois de morto - o que está inevitavelmente associado à ideia de vida após a morte - é a metáfora da própria eternidade da comunidade imaginada que se forma em torno de um clube de futebol. Enquanto essa comunidade existir, o morto, em sua faceta torcedora, existirá.
            Nesse momento, o espírito clânico da identidade clubística se apresenta com maior nitidez, e o que aparentemente é apenas um adorno numa sepultura, converte-se em um recado aos vivos, um guia de como se portar em vida. É como se o morto se reportasse aos vivos - na verdade aqui temos um diálogo entre vivos, já que aquele que enfeita o túmulo está, necessariamente, vivo - lembrando-os da importância do ato de torcer, já que, a própria sobrevivência do morto enquanto torcedor, depende da sobrevivência da comunidade imaginada que se forma em torno do clube. Manter essa comunidade "viva", garantir sua eternidade, é tarefa dos vivos. Uma espécie de dever que se assume com os mortos.
            Na verdade, esse fenômeno não é novo. Ainda que de maneira distinta, essa relação entre as agremiações de futebol e os rituais de morte, esteve presente desde os primórdios do futebol no Brasil. É comum encontrarmos na imprensa periódica das décadas de 1910, 1920 e 1930, referências à participação de agremiações de futebol em ritos fúnebres. Nesse período, as próprias hierarquias no interior das associações esportivas eram reproduzidas na hora da morte. Quando da morte de dirigentes dos grandes clubes, indivíduos pertencentes às elites urbanas, o trabalho de memória realizados pelas agremiações futebolísticas e pela imprensa esportiva, caminhava no sentido de ressaltar a importância daquele paredro para a construção e engrandecimento da associação a qual pertencia. Normalmente, nessas ocasiões, retratos e bustos do defunto eram inaugurados nas sedes sociais dos clubes, e extensas biografias eram traçadas nas páginas esportivas dos jornais. Nesses espaços de memória, edificava-se socialmente a narrativa, até hoje hegemônica, de que as elites foram os atores protagonistas no processo de introdução e estruturação do futebol no Brasil.
            De outro modo, na ocasião da morte de atletas ainda em atividade, especialmente daqueles egressos das camadas populares, era comum que os diretores e associados mais endinheirados do clube empreendessem ações filantrópicas, como auxílios para a construção de túmulos e doações em dinheiro para a família enlutada, afim de estimular o sentimento de gratidão, base do patriarcalismo e de seu  equivalente no universo do futebol, o "amadorismo marrom". Em meio ao processo de ampliação da participação de trabalhadores pobres, na condição de atletas não remunerados dos clubes e ligas de futebol, o momento da morte era um evento importante no qual as diferenças no interior do clube eram reafirmadas, o lugar de cada grupo social - diretores, sócios, jogadores, torcedores - na organização do futebol era sacramentado.
            Com o passar do tempo, a maior espetacularização do futebol, o desenvolvimento das grandes torcidas e a intensificação da idolatria aos ícones esportivos, os sentidos da morte no futebol mudam de figura. Os grandes atletas passam a ser velados como heróis nacionais, com cortejos fúnebres acompanhado por milhares de pessoas nas vias públicas, com direito a carro de bombeiro e cobertura da imprensa internacional. O fenômeno não se restringe aos jogadores de futebol, como Garrincha, mas também a atletas de outras modalidades esportivas, como o automobilista Ayrton Senna. Os bustos nos clubes não são mais dos dirigentes, mas dos atletas, que se transformam nos atores centrais da memória histórica do futebol.
            Os torcedores, ao seu modo, também se apropriam dos símbolos da morte, levando caixões aos estádios, ora para representar o óbito do oponente, ora para protestar contra o definhamento do próprio clube. Assim, há uma relação de troca simbólica entre os universos da morte e do futebol. Como vimos anteriormente, se os aficionados levam os símbolos da morte aos estádios, levam também os símbolos do futebol aos cemitérios, para demarcar sua paixão torcedora. Atento a esse capital simbólico representado pela ideia de eternidade da comunidade de torcedores de um clube, o Sport Club Recife lançou, em 2012, uma campanha de estímulo à doação de órgãos, com o simbólico nome de "Pelo Sport tudo. Até depois de morrer". A peça publicitária da campanha, premiada com o "Cannes Lion" no prestigiado Festival de Publicidade de Cannes, em 2013, traz os relatos de torcedores que tinham adquirido suas carteirinhas de "doador rubro-negro". Um deles, apelando à materialidade do corpo, afirma categoricamente: "Se alguém levar meu coração, leva o Sport junto". Outro, apostando na eternidade do torcer, sentencia: "Eu sou rubronegro até depois de morrer irmão. Até a alma é rubronegra!"