Crônica da Semana
O
torcer das almas: o futebol e os ritos de morte
Jhonatan
Uewerton Souza
Alma
torce? Fui tomado por essa indagação enquanto passeava por um cemitério campal.
Gosto de observar as decorações nas sepulturas, de alguma maneira, o vivo que
decora - a menos que o defunto tenha especificado os ornamentos do jazigo em
testamento - imprime no morto uma narrativa daquela trajetória que se encerra.
Até pouco tempo, essas decorações se resumiam em flores, imagens sagradas,
fotografias do sepultado e, quando muito, epitáfios. Atualmente, com a
flexibilização das regras em alguns cemitérios, o número de objetos de
decoração foi multiplicado, estimulando o desenvolvimento de um mercado de
produção e comercialização de ornamentos fúnebres. Nesse novo cenário, são comuns
os enfeites que evocam determinadas identidades, servindo como apresentações à
sociedade daquele que repousa em morte, junto com as informações clássicas,
como o nome, a da data de nascimento e falecimento, e a fotografia.
Num
dos túmulos, os vivos fizeram questão de sublinhar o pertencimento do morto a
um determinado ofício, nele lia-se: "Construí casas para os homens na
terra e Deus construiu no céu, uma mansão para mim". Em outras sepulturas,
aspectos distintos da vida do defunto eram evocados. Com alguma surpresa
constatei que, em um número significativo de covas, havia pequenas plaquetas
fincadas na grama, com os distintivos dos clubes de futebol adorados pelos
sepultados. Nesses casos específicos, normalmente entre homens, a identidade
clubística era alçada, pelos vivos, ao estatuto de identidade social
fundamental daquele que jazia, um ponto de referência e resumo de vida, um dado
biográfico essencial.
Ali,
onde o corpo não é mais o local por excelência de expressão do torcer, é que a
identidade clubística parece demonstrar sua força. Ao projetar a persistência
do ato de torcer para além dos limites da vida, os vivos parecem depositar no
morto suas esperanças de infinitude. Essa vontade de eternidade expressa na
crença de que o sujeito continua a torcer mesmo depois de morto - o que está
inevitavelmente associado à ideia de vida após a morte - é a metáfora da
própria eternidade da comunidade imaginada que se forma em torno de um clube de
futebol. Enquanto essa comunidade existir, o morto, em sua faceta torcedora,
existirá.
Nesse
momento, o espírito clânico da identidade clubística se apresenta com maior
nitidez, e o que aparentemente é apenas um adorno numa sepultura, converte-se
em um recado aos vivos, um guia de como se portar em vida. É como se o morto se
reportasse aos vivos - na verdade aqui temos um diálogo entre vivos, já que
aquele que enfeita o túmulo está, necessariamente, vivo - lembrando-os da
importância do ato de torcer, já que, a própria sobrevivência do morto enquanto
torcedor, depende da sobrevivência da comunidade imaginada que se forma em
torno do clube. Manter essa comunidade "viva", garantir sua
eternidade, é tarefa dos vivos. Uma espécie de dever que se assume com os
mortos.
Na
verdade, esse fenômeno não é novo. Ainda que de maneira distinta, essa relação
entre as agremiações de futebol e os rituais de morte, esteve presente desde os
primórdios do futebol no Brasil. É comum encontrarmos na imprensa periódica das
décadas de 1910, 1920 e 1930, referências à participação de agremiações de
futebol em ritos fúnebres. Nesse período, as próprias hierarquias no interior
das associações esportivas eram reproduzidas na hora da morte. Quando da morte
de dirigentes dos grandes clubes, indivíduos pertencentes às elites urbanas, o
trabalho de memória realizados pelas agremiações futebolísticas e pela imprensa
esportiva, caminhava no sentido de ressaltar a importância daquele paredro para
a construção e engrandecimento da associação a qual pertencia. Normalmente,
nessas ocasiões, retratos e bustos do defunto eram inaugurados nas sedes
sociais dos clubes, e extensas biografias eram traçadas nas páginas esportivas
dos jornais. Nesses espaços de memória, edificava-se socialmente a narrativa,
até hoje hegemônica, de que as elites foram os atores protagonistas no processo
de introdução e estruturação do futebol no Brasil.
De
outro modo, na ocasião da morte de atletas ainda em atividade, especialmente daqueles
egressos das camadas populares, era comum que os diretores e associados mais
endinheirados do clube empreendessem ações filantrópicas, como auxílios para a
construção de túmulos e doações em dinheiro para a família enlutada, afim de
estimular o sentimento de gratidão, base do patriarcalismo e de seu equivalente no universo do futebol, o
"amadorismo marrom". Em meio ao processo de ampliação da participação
de trabalhadores pobres, na condição de atletas não remunerados dos clubes e
ligas de futebol, o momento da morte era um evento importante no qual as
diferenças no interior do clube eram reafirmadas, o lugar de cada grupo social
- diretores, sócios, jogadores, torcedores - na organização do futebol era
sacramentado.
Com
o passar do tempo, a maior espetacularização do futebol, o desenvolvimento das
grandes torcidas e a intensificação da idolatria aos ícones esportivos, os
sentidos da morte no futebol mudam de figura. Os grandes atletas passam a ser
velados como heróis nacionais, com cortejos fúnebres acompanhado por milhares
de pessoas nas vias públicas, com direito a carro de bombeiro e cobertura da
imprensa internacional. O fenômeno não se restringe aos jogadores de futebol,
como Garrincha, mas também a atletas de outras modalidades esportivas, como o
automobilista Ayrton Senna. Os bustos nos clubes não são mais dos dirigentes,
mas dos atletas, que se transformam nos atores centrais da memória histórica do
futebol.
Os torcedores, ao seu modo, também
se apropriam dos símbolos da morte, levando caixões aos estádios, ora para
representar o óbito do oponente, ora para protestar contra o definhamento do próprio
clube. Assim, há uma relação de troca simbólica entre os universos da morte e
do futebol. Como vimos anteriormente, se os aficionados levam os símbolos da
morte aos estádios, levam também os símbolos do futebol aos cemitérios, para
demarcar sua paixão torcedora. Atento a esse capital simbólico representado
pela ideia de eternidade da comunidade de torcedores de um clube, o Sport Club
Recife lançou, em 2012, uma campanha de estímulo à doação de órgãos, com o
simbólico nome de "Pelo Sport tudo. Até depois de morrer". A peça
publicitária da campanha, premiada com o "Cannes Lion" no prestigiado
Festival de Publicidade de Cannes, em 2013, traz os relatos de torcedores que
tinham adquirido suas carteirinhas de "doador rubro-negro". Um deles,
apelando à materialidade do corpo, afirma categoricamente: "Se alguém
levar meu coração, leva o Sport junto". Outro, apostando na eternidade do
torcer, sentencia: "Eu sou rubronegro até depois de morrer irmão. Até a
alma é rubronegra!"