terça-feira, 18 de junho de 2013

Crônica da Semana

Futebol em tempos de cólera

por Natasha Santos, doutoranda em História



“Acho que o futebol existe para unir as pessoas. Isso é claro, e eu sei um pouco sobre os protestos que acontecem aqui. As pessoas estão usando o futebol como plataforma e a presença da mídia internacional para fazer certas demonstrações”, alertou Joseph Blatter.

"Não vamos permitir que nenhuma dessas manifestações atrapalhe nenhum dos eventos que nos comprometemos a realizar. Quem achar que pode impedir a realização desses eventos enfrentará a determinação do governo de impedir. As manifestações serão toleradas dentro desse limite”, profetizou Aldo Rebelo.

Não vamos permitir, não vamos tolerar. São apenas 20 centavos! Não é um movimento legítimo.

Até que jornalistas saem machucados.

Aí chamam o Pedro Bial para uma análise crítica da manifestação que, em 17 de junho, se espalhou por várias cidades brasileiras, e que, como tal, nunca vi nada em meus 24 anos de vida.

E aí, segundo algumas correntes teóricas, isso que vivemos é o mais próximo da democracia, em seu sentido puro. Mas, que tipo de democracia é esta em que, primeiro, Aldo Rebelo (quem é o Aldo Rebelo?) ameaça os manifestantes e alerta que, se fosse os torcedores, não vaiaria a Dilma. Ou o Blatter criticar o uso do futebol, da mídia internacional, para protestos. Certo, pessoal, vamos esperar o fim da Copa das Confederações, todos irem embora e vamos protestar entre nossos pares, no isolamento de uma sala de aula ou no limite das redes sociais – as quais, a propósito, foram os principais meios de contaminação revolucionária.

É deveras complexa a tentativa de analisar um evento em andamento, cuja direção só se pode hipotetizar. Mas o que se percebe é que, em primeiro lugar, toda essa manifestação não surge do nada às portas dos estádios. Os sinais já vinham sendo dados por meio de outras manifestações, passeatas e facebook, inclusive. Os serviços encarecem, mas não melhoram. A saúde, a educação e grande parte dos serviços públicos (como o transporte, em destaque) não funcionam, apesar do custo de vida aumentar cada vez mais. Enquanto isso, estádios são reformados a preços altíssimos – isso sem considerar as caixas pretas e superfaturamentos, ao melhor estilo Pan2007 –, sem nenhuma perspectiva de retorno, em forma de legado, à população. Por favor, sentimento de unidade nacional não é legado, ao menos não é fruto de investimentos altíssimos em estádios. É legado, sim, do discurso dissonante iniciado na década de 1940, do futebol enquanto principal símbolo identitário brasileiro.

Não bastasse isso, alguns estádios já “desmontaram” na primeira chuva ou apresentaram problemas nos elevadores e etc. Lá se vão mais alguns milhões para a reforma. Estádios construídos sem necessidade, como o do Corinthians, também entram nesta conta. E todos esses elefantes brancos trarão ainda mais custos à população e a todos os outros serviços públicos. O que dizer do custo da manutenção do estádio de Manaus, por exemplo? Ou o estádio do Morumbi, todo bonitão, que precisaria de reformas provavelmente muito mais baratas do que a construção de um novo estádio. E vem o Jô Soares dizer que a maior manifestação seria cantar o hino de costas no jogo do Brasil. Ok, mas para entrar em um estádio e cantar o hino nacional de costas é preciso pagar um alto preço pelos ingressos elitizados. Copa para quem, mesmo? Herança social para quem?

Os elefantes brancos – um entre os vários problemas de impacto/legado – não são novidade no rol de problemas que o Brasil pode herdar da Copa do Mundo. Além dos gastos que, sabemos, será também proveniente de investimento público, a população terá que arcar com a manutenção (nada barata) desses estádios. Das 12 cidades-sede de 2014, Natal e Brasília já apontam como desafio a manutenção de suas arenas, já que nenhuma destas cidades tem potencial esportivo para manter o espaço apenas com a renda das partidas futebolísticas. Não custa lembrar a África do Sul, que ainda vive os legados negativos da Copa de 2010. E é aí que fica um dos pontos do problema: não conseguimos ter acesso a um serviço público de qualidade e ainda vamos adquirir mais custos para a garantia do padrão FIFA. Acordos para a construção/reforma de estádios soam como prioridades em detrimento de questões como o transporte público.

Fico imaginando a surpresa dos nossos líderes e do próprio Blatter. “Vamos para o Brasil da isenção fiscal, o país do futebol”. Nunca esqueço a felicidade pueril do Pelé, abraçando a galera de Brasília, quando foi anunciada a Olimpíada no Brasil, por exemplo. E é claro, nenhum país se esforça tanto para organizar megaeventos apenas para se destacar mundialmente.

Daí o efeito histórico das manifestações que estão acontecendo, não só pela amplitude tomada. Se o futebol é reconhecido por ser usado politicamente, produzindo alienação, no sentido de promover governos, ditatoriais ou não, agora ele é utilizado no sentido contrário: no sentido do protesto. "Então, vocês estão preocupados com o futebol? Ok, nós também".

A verdade é que é preciso reconhecer: se revolução fosse fácil, em fila indiana e nariz de palhaço, teríamos uma por dia.