terça-feira, 18 de março de 2014

50 anos do Golpe de 1964 e futebol: temas de um passado presente



Em 31 de março de 1964 o Brasil se deparava com o golpe que inaugurava um dos intervalos de maior recrudescimento político de sua história. Sob a tutela dos militares, amparados por parcela significativa da sociedade civil, o país mergulhava em um interstício de suas instituições democráticas, uma ação que não só freava o efervescente debate que se desenhava entre diferentes setores da sociedade como o substituía pelo autoritarismo e violência. 

Sob a falácia da Doutrina de Segurança Nacional, capaz de atribuir um sentido de ação comum a um movimento tão cindido quanto controverso, a autoproclamada Revolução não só se apoderava dos mecanismos de administração do país como localizava os seus inimigos sob uma categoria tão abrangente e relativamente vazia como a subversão. Para os apoiadores do movimento, a terminologia poderia ser facilmente apreendida como um enquadramento do outro, daquele que invertia os valores perdidos e se diferenciava dos bons preceitos que deveriam reger a vida familiar, cristã e ordeira do povo brasileiro. 

Nesses termos, a violência era vista como uma espécie de mecanismo de controle, um mal necessário com o qual se buscava sanar o tecido social fraturado e proteger as “pessoas de bem”. Seu emprego se convertia em uma espécie de medida pedagógica e punitiva, responsável tanto por estabelecer a ordem quanto combater os desvios. Paradoxalmente, o abuso da força, o cerceamento de liberdades até então constitucionais e a banalização da repressão – a qual se espalhava indiscriminadamente pelos diferentes aspectos da vida social, passando dos lugares tradicionais da política partidária até os múltiplos meios de produção cultural – não eram vistos pelos advogados do regime como contrapontos a democracia, mas precisamente como meios válidos de defendê-la.


Para os demais, aqueles minimamente cientes de suas discordâncias com a nova administração, a subversão surgia como um espectro invisível, tão temível quanto indecifrável. Gradualmente o crescente desacordo seria suprimido pelo medo, bastante palpável, sobretudo a partir da difusão dos órgãos de vigilância e repressão nos moldes dos DEOPS e DOI-CODI. Manifestar-se ou comportar-se de maneira contraria ao esperado poderia significar uma inclinação subversiva, acompanhada dos riscos inerentes a sua descoberta. Em certa media, ao apresentar um inimigo tão intangível como obscuro, a ditadura fazia de todos suspeitos em potencial. Desse modo, ocultar e / ou suprimir comportamentos, ideias ou mesmo gostos passariam a ser práticas comuns realizadas cotidianamente, tanto no plano coletivo quanto individual. Nesses casos, o temor da reação do Estado em vigor prescindia a urgência de sua intervenção direta. Entre esses sujeitos, mesmo os que jamais foram abordados pelos agentes da repressão, a proposta de democracia apresentada pelo regime se convertia apenas em violência.

Como bem mostraria o tempo, a intervenção militar, incialmente suposta como breve, se estenderia por mais de 20 anos, ao longo dos quais se mesclaria e afetaria de múltiplas formas a sociedade brasileira. Nada passaria incólume a ela, fosse no tocante a sua ingerência ativa ou com a sua simples, se é que podemos denomina-la assim, convivência. Nem mesmo o futebol. 

Não por acaso ainda nos deparamos com diferentes versões, leituras e memórias sobre os variados intentos de capitalização política da modalidade esportiva durante estes anos. Do mesmo modo, verificamos diferentes movimentos a partir do próprio universo futebolístico, com aproximações e distanciamentos em relação ao quadro político da época. Como o próprio regime, estes intentos estiveram longe da homogeneidade. Antes disso se caracterizaram pela reconfiguração constante entre a organização desportiva, os significados culturais locais e nacionais construídos ao redor do futebol e, sobretudo, sua capacidade de mobilização passional e popular ante um panorama político majoritariamente asséptico, incapaz de produzir e manter por si mesmo um sentido de legitimidade. 

Como exemplo, verificamos a eclosão de variadas interpretações sobre a conquista da Copa do Mundo de 1970, tanto no debate sobre a influência do regime na formação da equipe que conquistou o tri quanto no alcance dos discursos propalados em torno da vitória como meros mecanismos de propaganda e alienação massivas. Ou na segunda metade da década o progressivo inchaço do jovem campeonato nacional. Contexto em que se notava a relação dos dirigentes com os cenários políticos regionais, como era o caso do então presidente da CBD e dos primeiros anos da CBF, Almirante Heleno Nunes, também a frente da ARENA do Rio de Janeiro. Já em um sentido oposto, observamos as posturas contestatórias de jogadores como Afonsinho e Reinaldo, bem como a paradigmática experiência da democracia corintiana, contrastando simultaneamente com as estruturas gerencias do futebol e do regime, e a participação de jogadores, entre outros personagens, na campanha pelas diretas na década de 1980.

Em um ano em que a mobilização política, mesmo que difusa e controversa, flerta com o constante questionamento quanto as condições em que se desenvolve o processo de organização da Copa do Mundo no Brasil, também nos deparamos com o 50º aniversário do golpe militar. Longe de ser uma data para comemorar - algo que sequer precisaria ser dito - se trata de um convite a reflexão sobre o nosso passado recente, nossas práticas políticas e a maneira como sua memória se mantém como um desafio presente, inclusive na apreciação das relações políticas que cercam o futebol como fenômeno cultural singular no Brasil, eminentemente emotivo, popular e massivo.

Entre as ações, eventos e atividades que nos chamam a recordar criticamente este período, encontramos iniciativa da Rádio UFMG Educativa, que está produzindo uma série sobre o golpe, a ditadura militar e sua relação com distintos aspectos da sociedade e cultura do país no período, concedendo espaço especial para o futebol. Até o final do mês serão totalizados 50 programas, com a participação de diferentes convidados. O trabalho está sendo reunido e disponibilizado para consulta na internet.

Para verificar o que já foi lançado até aqui e o que está por vir, acessem:


Sugestão e comentários de Ernesto Sobocinski Marczal