segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Crônica da Semana

Pelé e a construção de um mito
por Natasha Santos

Mário Filho escreveu, em 1963, o que seria a “biografia do primeiro ‘cidadão do mundo’ que o Brasil já produziu”. Ao título de “Viagem em torno de Pelé”, o cronista propõe um panorama da vida do então craque, intimamente vinculada ao futebol.

O detalhe é que o romance de Mário Filho é, na verdade, próximo a uma (re)escrita de outra biografia: “Eu sou Pelé”, escrita por Benedito Ruy Barbosa, com base nas narrativas do atleta – o qual acaba aparecendo como autor. A ideia deste livro nasceu do roteiro que estava sendo preparado para um filme que contaria a vida de Pelé. Estrelado pelo próprio jogador, o filme “Rei Pelé”, com estreia em 1963, contou com diálogos de Nelson Rodrigues e levaria o futebol, temática pouco explorada, aos telões do cinema nacional.

Entretanto, segundo a análise da crítica, trata-se de uma aventura cinematográfica sem qualquer consequência, sem nada a acrescentar no nosso cinema, destinando-se apenas a explorar a popularidade de Pelé, conferida nas bilheterias. (Talvez isso figure como um dos elementos que possam justificar o esquecimento em que caiu tal produção.)

O jogador era uma celebridade. Para se ter uma ideia, de acordo com uma enquete realizada na Europa, veiculada pelo jornal New York Times em 1964, Pelé estava entre os três nomes mais conhecidos do mundo; perdendo apenas para Kruschev e Kennedy, concorrendo ainda com a popularidade de astros como Elizabeth Taylor, Marylin Monroe e Marlon Brando. Bem, a julgar pelo andar da carruagem europeia, pode-se imaginar o alvoroço inimaginável em solo brasileiro, desde 1958...

Pois bem. Diante do best seller “Eu sou Pelé”, Mário Filho também resolveu falar do ídolo brasileiro, transformando-o em herói – e, talvez, um herói anti-paulista, já que, para o autor, Santos era a cidade menos paulista e mais carioca de todas as cidades paulistas, tendo em vista as praias.

Sem deixar de puxar para os cariocas todos os méritos de ser brasileiro, a viagem em torno de Pelé traz duas paradas essenciais: as Copas de 1958 e 62. A narrativa sanguineamente rodrigueana é bastante similar à história de Benedito Ruy Barbosa, mas lapidada com requintes de literatura.

Por exemplo: sob a lógica do próprio Edson Arantes, a lesão no joelho, em um dos treinos para a Copa, que quase tirou Pelé do elenco, foi tratada com a dedicação do massagista Mário Américo, que não podia ver Pelé de bate-papo que já o intimava para mais um “tratamentozinho”.

Mário Filho, porém, dá uma ajeitada na situação. Segundo o cronista, Pelé é que não deixava Mário Américo em paz, sempre indo atrás de mais um tratamento, porque queria ajudar o seu país o mais breve possível. Pelé queria melhorar, sim, mas mais pelo fantasma da lesão que comprometera a atuação de seu pai nos gramados, do que propriamente pensando na seleção. Quem queria acelerar a recuperação era a comissão técnica, que sabia da necessidade de Pelé em campo.

E são detalhes como este que moldam o herói ao longo da narrativa, fazendo com que o leitor – mesmo quase 50 anos depois –, torça para que Pelé se recupere para a Copa e, ao mesmo tempo, tenha raiva do clube do Santos, por forçar Pelé a jogar sem descanso e mesmo sentindo dores. O Santos fazia excursões pela Europa, exibindo o craque, o qual, para Mário Filho, era um sujeito humilde, que jogava apenas porque gostava.

Pelé jogava machucado pela seleção. Pelo Santos. Pelos companheiros do exército. Colocava a família sobre todas as coisas. Sentia orgulho de ser brasileiro. Tinha raça. E por aí, Mário Filho contribuiu, com toda a sua influência, para a construção definitiva do Rei.

E nessa de construir heróis, jornalistas, cronistas, blogueiros e até o Santos, insistem em comparar Neymar a Pelé, especialmente pelas jogadas, no nítido esforço de talvez edificar um príncipe. Mas, já em agosto de 1961, o então redator-chefe de “A Gazeta Esportiva”, Thomaz Mazzoni, sabiamente opinava sobre a constante comparação entre Friedenreich, Leônidas da Silva, Ademir e Pelé:

“Em futebol, especialmente entre o Passado e o Presente, qualquer comparação é difícil, penosa, e quase impossível, especialmente para os que não alcançaram as gerações passadas. Cada época tem os seus ídolos, seus campeões, pelo que fazem e valem, não podem ser julgados e comparados medindo-se, pesando-se seus gols e seus feitos”. Faço minhas as palavras de Mazzoni.
Ponto final.

2 comentários:

  1. Cara Natasha:

    Parabéns pelo post. Concordo que a comparação no mundo do futebol é complicada pois não temos como equilibrar as diferentes variáveis de como era o jogo em determinada época da História. Todavia, comparar também é um exercício historiográfico muito interessante, desde que se faça com muito rigor.

    Para lembrar recente entrevista com Pelé, este disse que Neymar é melhor que Messi porque o argentino chuta apenas com a esquerda. Fico imaginando se o Messi fosse ambidestro...

    Um beijo,

    André Alexandre

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  2. André,

    Obrigada pelo comentário!
    De fato, concordo com você a respeito de comparações (inclusive este é um dos meus interesses acadêmicos), mas rigor não é algo muito frequente na mídia, não é?!

    E é bem isso: imagine se Messi fosse ambidestro, haha.(Tenho a impressão de que Edson Arantes teve o ego ferido pela declaração de Messi, quando este disse que nunca havia visto Pelé jogar e que isso não lhe fazia falta. E aqui fica a minha parcialidade, já que a inteligência de Messi em campo é absurdamente linda! -- mesmo em se tratando de um argentino.)

    Abraço,
    Natasha.

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