segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Futebol e civilização


             

         Como minha tarefa mensal de escrever para nosso blog, minha opção foi divulgar uma crônica ainda pouco conhecida entre nós, de autoria do flâneur carioca do começo do século XX, João do Rio, pseudônimo de João Paulo Alberto Coelho Barreto. Nascido em 1881, João do Rio foi um dos primeiros a perceber que naquela expressão esportiva do futebol nascia uma paixão e, com ela, uma identidade cultural brasileira. Esse texto – A hora do football – foi publicado originalmente em 1916. Era um contexto em que o mundo civilizado encontrava-se em pleno autoextermínio (a I Guerra Mundial) e experimentava um antagonismo entre a descrença no progresso (o fim da era vitoriana, provocado pela guerra) e a esperança no homem novo. Um “homem novo” que pode ser sintetizado tanto na frustração freudiana à cura do mal-estar civilizacional, quanto no maior crime da humanidade, que imaginava resolver os males da civilização, com o extermínio de homens e mulheres de “raças impuras”.
           É nesse compasso (ou descompasso) do desenvolvimento das ciências e da política que se forjou uma febre esportiva, que Machado de Assis, já em 1896, chamara de “civilização esportiva”, inaugurando a crítica ao que se tornou o culto da modernidade (e, sobretudo da pós-modernidade): o corpo olímpico dos atletas.
           Para saber mais, leiam a tese de doutorado do André Mendes Capraro, ou o capítulo de Nicolau Sevcenko, no qual se inspirou Capraro. Boa leitura!


Sugestão e comentário de Luiz Carlos Ribeiro.



A hora do football

É o novo ground. O Clube de Regatas do Flamengo tem, há 20 anos pelo menos, uma dívida a cobrar dos cariocas. Dali partiu a formação das novas gerações, a glorificação do exercício físico para a saúde do corpo e a saúde da alma. Fazer esporte há 20 anos ainda era para o Rio uma extravagância. As mães punham as mãos na cabeça, quando um dos meninos arranjava um haltere. Estava perdido. Rapaz sem pince-nez, sem discutir literatura dos outros, sem cursar as academias – era homem estragado.
E o Clube de Regatas do Flamengo foi o núcleo de onde irradiou a avassaladora paixão pelos esportes. O Flamengo era o parapeito sobre o mar. A sede do clube estava a dois passos da casa de Júlio Furtado, que protetoramente amparava o delírio muscular da rapaziada. As pessoas graves olhavam “aquilo” a princípio com susto. O povo encheu-se de simpatia. E os rapazes passavam, de calção e camisa de meia, dentro do mar a manhã inteira e a noite inteira.
Então, de repente, veio outro clube, depois mais outro, enfim uma porção. O Boqueirão, o Misericórdia, Botafogo, Icaraí estavam cheios de centros de regatas. Rapazes discutiammuque em toda parte. Pela cidade, jovens, outrora raquíticos e balofos, ostentavam largos peitorais e a musculatura herculeana dos braços. Era o delírio do rowing, era a paixão dos esportes. Os dias de regatas tornavam-se acontecimentos urbanos. Faltava apenas a sagração de um poeta. Olavo Bilac escreveu a sua celebrada Salamina.
- Rapazes, foi assim que os gregos venceram em Salamina! Depois disso, há 16 anos, o Rio compreendeu definitivamente a necessidade dos exercícios, e o entusiasmo pelo futebol, pelo tênis, por todos os outros jogos, sem diminuir o da natação e das regatas, é o único entusiasmo latente do carioca.
Rendamos homenagem às Regatas do Flamengo!
O meu velho amigo, fraco e pálido, falava com ardor. Interrompeu-se para tossir. Continuou:
- Pois é este clube que inaugura hoje o seu campo de jogos. Haverá acontecimento maior? O Rio estará  todo inteiro ali... Engasgou-se. O automóvel que passara a correr pelo palácio de José Carlos Rodrigues, onde se realizava a primeira recepção de inverno do ilustre jornalista, estacara. Estávamos à porta do novo campo de jogos. E o meu velho amigo precipita-se. A custo acompanhei-o por entre a multidão e, imprensado, quase esmagado, icei-me à arquibancada. Mas o aspecto era tal na sua duplicidade, que logo eu não soube se devia olhar o jogo do campo em que Galo triunfava, ou se devia comover-me diante do frenesi romano da multidão.
Não! Há de fato uma coisa séria para o carioca – o futebol! Tenho assistido a meetings colossais em diversos países, mergulhei no povo de diversos países, nessas grandes festas de saúde, de força e de ar. Mas absolutamente nunca eu vi o fogo, o entusiasmo, a ebriez da multidão assim. Só pensando em antigas leituras, só recordando o Coliseu de Roma e o Hipódromo de Bizâncio.
O campo do Flamengo é enorme. Da arquibancada eu via o outro lado, o das gerais, apinhado de gente, a gritar, a mover-se a sacudir os chapéus. Essa gente subia para a esquerda, pedreira acima, enegrecendo a rocha viva. Embaixo a mesma massa compacta. E a arquibancada – o lugar dos patrícios no circo romano, era uma colossal, formidável corbelha de belezas vivas, de meninas que pareciam querer atirar-se e gritavam o nome dos jogadores, de senhoras pálidas de entusiasmo, entre cavalheiros como tontos de perfume e também de entusiasmo.
(...)
Os gritos, as exclamações cruzavam-se numa balbúrdia. Os jogadores destacavam-se mais na luz do ocaso. E de todos os lados subia o clamor da turba, um clamor de circo romano, um clamor de Hipódromo no tempo em que era basilissa Teodora, a maravilhosa....
Nervoso, agitado, sem querer, ia também gritar por Galo, que vencia e que eu via pela primeira vez. Mas o delírio chegara ao auge. O meu velho amigo dizia, quase desmaiado:
- Venceu o Flamengo por um escore de 4 x 1.
À porta, 500 automóveis buzinavam, bufavam, sirenavam. E as duas portas do campo golfavam para frente do Guanabara mais de seis mil pessoas arrasadas pela emoção paroxismada do futebol.

Referência:
RIO, João do. Pall-Mall Rio: inverno mundano de 1916. Rio de Janeiro: Villas Boas, 1917. Extraído de: João do Rio – Uma Antologia (seleção e apresentação de Luís Martins). José Olympio Editora. 3ª edição/2005.