quarta-feira, 22 de maio de 2013

Defendido por Havelange, Videla usou Copa em prol da ditadura Argentina

General Videla entregou a taça da Copa do Mundo para Daniel Passarella em 78
General Videla entregou a taça da Copa do Mundo para Daniel Passarella em 78


Morto na última sexta-feira, o ditador Jorge Rafael Videla foi um dos principais personagens do Mundial mais controverso da história. À frente da Argentina entre 1976 e 1981, usou a Copa do Mundo de 78, organizada no país e vencida pela seleção local, como propaganda de um governo responsável pela morte de 30 mil pessoas.
Muitas dessas vítimas foram torturadas e executadas na sede da ESMA (Escola de Mecânica da Armada), cujo o prédio fica a 10 quadras do estádio Monumental de Nuñez, onde a seleção argentina venceu a partida final a Copa, sobre a Holanda, já sem Cruyff, por 3 a 1. A proximidade geográfica entre os locais é vista por muitos argentinos hoje como uma metáfora do que foi aquele Mundial: quando milhões de torcedores vibravam de alegria com a vitória do futebol local enquanto milhares de presos eram torturados e mortos.
“O tema dos desaparecidos naquela época não era midiático. Era escondido, restrito para famílias e vítimas da ditadura”, lembra o jornalista Guillermo Blanco, que cobriu o Mundial pela revista "El Gráfico".

A imagem do bigodudo Videla ao lado do já senhor, mas sempre atlético, João Havelange na tribuna de honra do Monumental de Nuñez no dia da final simboliza a proximidade dos dois. Foi na década de 70 que o cartola criou o modelo lucrativo de uma Copa patrocinada por empresas privadas, como a Coca-Cola, mas também majoritariamente bancada pelos governos dos países-sedes.

“Não se tem notícia de que Videla era um fã de futebol. Foi algo por conveniência política aquelas imagens dele comemorando os gols da seleção”, afirma Guillermo Blanco. Em raras entrevistas, o ditador revelou ter simpatia pelo Independiente, clube popular de Avellaneda, em Buenos Aires. “Ao usar o futebol, tampouco foi original. De longe, não foi o único ditador a se aproveitar do esporte”, completa.

Do general, Havelange ouviu “sim” quando quis e, seguindo o seu pragmatismo nas relações políticas, tampouco disse “não” para a utilização do torneio como propaganda de um regime ditatorial.

“Quando cheguei à Fifa, quem decidiu que a Copa ia ser na Argentina não fui eu nem o Comitê Executivo. Foi o Congresso [da Fifa], e você não pode mudar uma decisão do Congresso. Pode falar o que quiser. Eu só apertei o governo anterior, que era da senhora do Perón [Isabelita]”, contou o cartola em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, em 2008.

A escolha da Argentina como sede do Mundial, é verdade, aconteceu antes de Havelange e Videla chegarem ao poder. Foi em 1966. O brasileiro assumiu a presidência da Fifa em 1974 e o general tomou o governo da Argentina dois anos depois, em 1976, após um golpe militar. 

Havelange e Videla

“Fui ver o presidente Videla, não o conhecia. Ele me disse: "Senhor Havelange, não vou lhe dar a melhor Copa, mas vou lhe dar uma das melhores, pode estar certo". E fez tudo”, disse Havelange.

JOGADORES NEGAM QUE REGIME DITATORIAL AJUDOU TÍTULO DA ARGENTINA

 

Se o uso do Mundial como propaganda da ditadura é quase uma unanimidade entre os argentinos, a tese de que Videla influenciou no resultado do torneio encontra resistências, principalmente entre “boleiros” e torcedores. “Não fazia política, fazia gols. E só na final, contra a Holanda, marquei dois. Dizer que tivemos ajuda de alguém é uma bobagem”, contesta o artilheiro daquela Copa, Mario Kempes.
Paradoxalmente, os jogadores argentinos eram treinados por Cesar Menotti, técnico de conceitos e discurso arrojados e que sempre se disse um socialista.
“Todos os presos políticos, os perseguidos, os torturados e os familiares dos desaparecidos estavam esperando que Menotti dissesse algo, que tivesse um gesto solidário, mas não disse nada. Ele também estava fazendo política com o seu silêncio”, afirmou Adolfo Pérez Esquivel, prêmio Nobel da Paz em 1980, que conseguiu ser liberado de uma prisão argentina graças à pressão internacional, no dia 23 de junho de 1978, dois dias antes da final do Mundial.
“É provável que tenha sido permissivo de ter aceitado diálogo com pessoas que não deveria. Isso me irrita muito. Mas fui muito leal com o meu time e a minha gente”, se defende Menotti.A principal suspeita de influência do governo local no resultado do torneio recai sobre o jogo que levou a Argentina para a final, a goleada por 6 a 0 sobre o Peru. Ramón Quiroga, argentino naturalizado que defendia o gol peruano, disse em 1998 que ele e seus companheiros receberam dinheiro para entregar o jogo. Depois recuou.
Outro peruano que esteve na derrota, o atacante Oblitas revelou que o time recebeu a visita de Videla no vestiário antes do jogo. “Veio nos cumprimentar. Com ele estava nada mais nada menos que o secretário de Estado dos Estados Unidos, Henry Kissinger”, disse.

Fonte: http://esporte.uol.com.br/futebol/ultimas-noticias/2013/05/18/defendido-por-havelange-videla-usou-copa-em-prol-da-ditadura-argentina.htm

Sugestão e comentários de Ernesto Sobocinski Marczal


Entre as inúmeras recordações suscitadas pela morte do general ditador Jorge Rafael Videla, no cárcere na última semana, está o Campeonato Mundial de 1978, sediado e vencido pela Argentina em meio a violenta ditadura processita.  A brutalidade do regime instituído em 1976 já era demasiada notória no momento de realização da competição, as condições político-sociais vivenciadas no país platino estavam longe de figurar como algo incógnito, de modo que a simples prerrogativa do desconhecimento soava falsa e insuficiente. Assim, pode-se compreender o mundial da Argentina como um evento que ocorreu a despeito de seu contexto político, já que era praticamente impossível aos seus participantes negá-lo, por mais que demover as acusações dos organismos internacionais e remodelar a imagem do país consistissem em alguns dos objetivos primeiros projetados pela junta militar sobre a organização da competição.
Assim, sem dúvida, a Copa de 1978 foi um dos momentos de maior controvérsia na relação entre esporte e política, exemplo das possibilidades de uso político da modalidade esportiva, em muitos aspectos coerentes com a leitura restritiva do “ópio do povo”, cujo potencial permitiria a manipulação deliberada da massas populares, absorta nos efeitos inebriantes do jogo da bola, por parte de um  Estado e autoritário considerado friamente pragmático e racional. Uma prova cabal da supremacia da suposta racionalidade e lucidez política ante a imponderabilidade da passionalidade capaz de transformar os cidadãos em uma reles turba, ignara e inconsciente de seu papel político e social. Quase como se fosse possível obter uma explicação irredutivelmente lógica para as próprias ações que conduziram o Processo a constituir sua infindável relação de mortos, presos, torturados e desaparecidos. Tanto quanto o mundial, a ditadura também fora movida por paixões – ódios, temores, ressentimentos – que colocaram em movimento seus responsáveis, assim como o esporte colocara em movimento a população nas ruas das cidades ante a conquista caseira do título. Embora capitalizasse a vitória em seu favor, não era o regime militar local que mobilizava a população, mas sim a relação passional que detinham com o futebol como elemento de representação legitima de sua nacionalidade.
E nem mesmo esta relação ficaria sem ser imaculada pela ditadura. Não bastassem os abusos autoritários e repressores do processo, que perseguem a memória dos argentinos, as suspeitas levantadas em torno da campanha que levou a seleção local a conquista do caneco destituíram grande parte do significado do evento que o desarticularia, ao menos em parte, do duro quadro político e social do regime. Nem mesmo o mérito da disputa esportiva vivenciada nos gramados poderia ser atribuída somente a seleção e a população argentina. A própria vitória só fora obtida por meio da intervenção do Processo. Mesmo que esta perspectiva não esteja sedimentada (e não me arrisco aqui a firmar um falso veredito), a desconfiança gerada pela suspeição se torna suficiente para roubar um dos parcos pontos de pureza resguardada sobre o mundial: o resultado obtido dentro de campo.
O primeiro título mundial, conquistado em casa, se esvai sob uma memória polissêmica, de muitas formas, culpada e ressentida. Ressentida pelos anos de abuso e violência da ditadura, em que a lembrança dos milhares de desaparecidos se torna recorrente, sobretudo, através das organizações de mães e avós que transformam a plaza de mayo em Buenos Aires um monumento vivo de reminiscência e protesto. Culpada, pela sensação de participação e anuência com o regime desperta pelo mundial organizado sob os auspícios do governo militar. Sem a candidez do mérito esportivo, um dos parcos alentos aos milhares de argentinos que tomaram as ruas em 1978, os resquícios de orgulho se convertem em vergonha e a Copa de 1978 se decompõe em chaga da ditadura. Em outros termos, uma recordação de Videla.