segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Crônica da semana

Imprecisão, incerteza e paixão

Ernesto S. Marczal

Núcleo de Estudos Futebol e Sociedade

As últimas rodadas do Campeonato Brasileiro vêm sendo marcadas pela polêmica própria da mobilização passional característica do futebol. Com a competição aproximando-se da definição, lances, comentários e posturas dentro e fora dos gramados adquirem conotação diferenciada. Analistas, comentaristas, jogadores e torcedores tomam a palavra, desfrutando da liberdade de opinião fomentada pela própria regra do esporte: sua iminência interpretativa. Entre a multiplicidade de comentários, de posturas e pontos de vista (complementares ou controversos), os indivíduos buscam (nem sempre) a argumentação racional como forma de legitimação da opinião emitida. Em um esporte cuja regra resguarda lacunas de imprecisão e incerteza, no qual o resultado flerta permanentemente com a imprevisibilidade (“nem sempre o melhor time vence”), propiciando a manifestação irregular e repentina de emoções, sua medição, utopicamente, recai sobre a assertiva da razão.

Entretanto, a exigência de uma leitura racional, neutra, imparcial, objetiva do campo de jogo recai sumariamente sobre poucos indivíduos. Embora a mobilização proporcionada por uma partida de futebol de grande porte chegue mesmo à casa dos milhões, somente os responsáveis pela arbitragem possuem o compromisso irrestrito com a clareza da razão e da objetividade. A figura do arbitro, sobretudo, incorpora o pretenso ideal de justiça, neutra, imparcial, lógica e racional. Com tamanha responsabilidade o arbitro se torna a antítese da deliberação livre que permeia as manifestações correlatas ao jogo da bola. Se nos estádios existe uma relativa liberdade de manifestação dos indivíduos, somente a palavra do arbitro tem a força de se impor como “verdade” objetiva. Inconteste ou não, suas decisões assumem caráter imperativo, indiferente aos demais murmúrios, protestos e comentários. Contrariando a perspectiva do futebol como representação democrática e popular, o arbitro desempenha papel despótico. Mais do que a primazia sobre o desenrolar do jogo (marcação de faltas, validações dos gols, punições aos jogadores, etc.) também é o único que detém a autonomia diante da imprecisão da norma. Afinal a interpretação válida não se dá aos olhos de qualquer um, mas a partir do julgamento imediato do arbitro. Desta forma, sua decisão, supostamente pautada na capacidade de racionalização da regra, é eminentemente autoritária.

Ao contrario do que possa parecer, a posição desempenhada por estes personagens não é necessariamente privilegiada. A complexidade da função e a responsabilidade que acarreta fazem da função extremante impopular. Em um campo onde afloram paixões, os árbitros devem ser os únicos a se manter sobre o crivo irrestrito da razão. Mais do que mediar o jogo, exigi-se que estes se mantenham imunes a eclosão dos sentimentos despertos pelo esporte. Para isso cobra-se destes sujeitos o preparo necessário. Afinal, tarefa tão complexa não deve pode ser desempenhada por qualquer pessoa. O sinônimo deste preparo diferenciado muitas vezes é sintetizado sob o signo do “profissionalismo”. Porém, diferentemente dos atletas e comissão técnica, o árbitro ainda mantém a configuração do “amadorismo marrom”. Embora receba para trabalhar nos jogos sua categorização institucional ainda não existe. Poucos são os casos em que a dedicação à função é exclusiva. Esta, contudo, é apenas parte da questão. Mesmo o profissionalismo não suprime a manifestação das paixões e erros inerentes a posição humana do árbitro.

Neste sentido, como solução para as mazelas da incerteza humana crescem os defensores da tecnologia no esporte. Comunicação via rádio entre os integrantes, bandeira eletrônica, chip na bola para sinalizar se bola entrou ou não. Algumas destas medidas já devidamente experimentadas. Entre as medidas mais polemicas discute-se a utilização da imagem. O “replay” durante as partidas é por vezes sinalizado como medida definitiva para retirar as dúvidas nos lances mais difíceis. Partido do pressuposto de que as lentes das câmeras disporiam de uma perspectiva estritamente objetiva e imparcial, sua utilização continuaria marcada pela incerteza. Como o resto do jogo a leitura da imagem continuaria submetida a múltiplas interpretações. Ainda assim, a decisão final continuaria sob opinião autoritária, muitas vezes parcial e não consensual.

Não pretendo questionar a necessidade do árbitro ou me colocar contra a introdução da tecnologia no esporte. Longe disso. Mas diante de tamanha carga emotiva, é ao menos sintomático a busca da razão como mediadora das paixões humanas num campo de futebol. Inclusive por parte do “juiz”.

Um comentário:

  1. André Alexandre Guimarães Couto23 de novembro de 2010 às 21:43

    Caro Ernesto:

    O mundo do futebol e dos esportes de forma geral é pautado pela emotividade e uma dose grande de irracionalidade. Como explicar, então, uma torcida ir ao estádio e torcer contra seu próprio time, por exemplo? A imagem de imparcialidade do árbitro é confundida por neutralidade. O árbitro nunca é neutro, pois é influenciado pelo clima, pelo estado dos vestiários, pela viagem que fez até chegar no estádio, por seu estado físico e psicológico, por antipatias históricas com times e determinados jogadores, assim como as simpatias, etc. E olha que estou falando apenas em árbitros de boa fé... Incluir a tecnologia seria boa, mas não eliminaria vários dos problemas atuais, como você descreveu muito bem.
    Poderíamos pensar em árbitro robô, mas quem o programaria?

    Um abraço,

    André Alexandre G. Couto

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