segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Crônica da Semana


A Copa de 2014 e a conscientização social da interlocução política no futebol

Ernesto Marczal

Em 1983, o historiador Frances Pierre Ansart, na obra “La gestion des passions politiques”, observava que na análise política era preciso abrir para a investigação das afetividades em lugares inusitados. Naquele momento, o futebol era foco de raras investigações no Brasil e a sua apreciação um tanto reducionista, haja vista que a influência de uma interpretação marxista revolucionária, como prática de mera alienação popular, ainda era predominante.

Quase 30 anos depois do livro de Ansart, ainda inédito no Brasil, mas já devidamente apreciado de análises e estudos, parece cada vez mais evidente que o futebol é um dos lugares menos inusitados na averiguação de afetividades e suas ressonâncias políticas. Ao contrário. Mesmo no momento em que estas questões começavam a se desenhar no meio acadêmico, o jogo da bola já suscitava debates que se estendiam para além dos limites esportivos, embora sem a devida consciência da sociedade. O paradigmático movimento da democracia corinthiana, na década de 1980, surge como exemplo notório. As recorrentes tentativas de regulamentação da organização desportiva por parte do Estado, particularmente através das sintomáticas Leis Zico e Pelé, nos anos 1990, representam outras amostras da crescente interlocução entre o cenário político e esportivo. A alvorada do século XXI explicitou ainda mais tal faceta. A gradativa distensão de meios comunicativos, como a internet, e de suas derivadas mídias sociais escancara, de vez, a preocupação da opinião pública e seu (diversificado) posicionamento político sobre o esporte.

Desde o anúncio de que o Brasil seria a sede do mundial de 2014, o futebol passou a ocupar espaço central nas pautas nacionais. De forma até surpreendente, mais do que apenas celebrar a chegada de um evento esportivo deste porte, veículos de imprensa e a opinião pública propuseram o debate, relativamente franco, sobre os desdobramentos políticos e sociais da realização da Copa no país. Para além da capacidade de angariar recursos, ou das reais condições para a realização das obras, discute-se a idoneidade da gestão esportiva à frente deste projeto, bem com as possíveis ingerências do poder público.

As crescentes manifestações contrárias ao presidente da CBF, Ricardo Teixeira (citar o nome é quase uma redundância), têm evidenciado não a crítica de supostos “opositores” do futebol, mas, principalmente, a manifestação de uma generosa parcela de seus aficionados. Pessoas cuja relação com o jogo se desenvolve, primordialmente, pela comoção passional têm canalizado seus sentimentos também na afirmação de posturas políticas sobre o esporte. Neste processo, destaca-se um exercício de tensionamento entre as paixões suscitadas pelo futebol e a consciência de sua repercussão político-social. Uma das resultantes observadas é, justamente, o crescimento dos agentes interessados e preocupados com os desdobramentos dos eventos desportivos, para a sociedade brasileira.

Sob este aspecto, as querelas em torno da Copa de 2014 demonstram, até de modo insólito, o reconhecimento do papel político do futebol no país. Para além da reverberação de vozes dissonantes, reconhece-se, cada vez mais, sua importância social. Embora represente um indicativo de extrema relevância, não se trata de atestar o crescimento da importância da temática futebolística em estudos e pesquisas acadêmicas (algo que os especialistas já devem estar cansados de reler), mas atentar para a percepção socialmente compartilhada do futebol, particularmente diante do evento que se aproxima, como lugar privilegiado de manifestação e interlocução política.

Ou seja, a dimensão política do futebol sempre esteve presente, entretanto, somente agora aparenta adquirir o devido reconhecimento e conscientização da sociedade. Se o mundial não for um sucesso de realização para o país ou não resultar em um novo título para a seleção, o evento terá ao menos o “mérito” de alçar os debates políticos sobre o futebol, para além de resultados e jogadas desenvolvidas nos gramados.

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