segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Crônica da Semana

O futebol segura este país?
Por Ernesto S. Marczal


Logo da Copa do Mundo de 2014


Essa questão estampava a capa da revista IstoÉ da primeira semana de julho de 1978.  Era o início do campeonato mundial de futebol de seleções daquele ano, sediada na Argentina, e, independentemente das condições físicas e técnicas do escrete canarinho, parte significativa das atenções dos veículos de imprensa nacionais voltavam-se para a competição. Contudo, diferente do que o entusiasmo desportivo ingênuo ou o ceticismo político militante poderiam supor, o futebol estava longe de figurar como temática dominante no momento.

O país experimentava o esgotamento do aparato repressivo perpetrado pela Ditadura Militar (ainda que esta fosse se estender por mais sete anos) e, após longo período de recrudescimento, provava a distensão, ainda tímida, dos mecanismos de expressão político-públicos. O futebol, particularmente sob a égide do mundial, não escapou dos debates efervescentes. Era o que exaltava a referida edição de IstoÉ. Junto com a chamada da Capa a revista veiculava uma imagem sintomática sobre a relação que estabelecera internamente sobre a articulação entre futebol e política.
Tratava-se de uma charge assinada por Chico Caruso (infelizmente não pude reproduzi-la aqui). O desenho apresentava somente a perna esquerda de um homem acorrentado a uma bola de futebol (com seus clássicos gomos brancos e pretos). Ao abrir a revista deparamo-nos com a seção intitulada Política, onde a presente Copa do Mundo e dos anos anteriores, especialmente o tricampeonato de 1970, servia como espaço de reflexão quanto às transformações e desafios recentes enfrentados no conturbado cenário do país. A “candidatura” do general Figueiredo à presidência, em substituição ao colega Geisel, as reinvindicações grevistas de trabalhadores da indústria automotiva e o alardeado processo de redemocratização compunham alguns dos temas visitados na discussão proposta pelo texto. A grande dúvida era se, como em ocasiões anteriores, ao menos sob o olhar da publicação, o desempenho da seleção nos estádios do vizinho platino conseguiria envolver quase por completo a população nacional, destituindo temporariamente a hierarquia de suas preocupações imediatas e mazelas cotidianas.
No contexto de sua publicação, como já indicava a própria ação perpetrada através da revista, concluía-se que “já não se pensa apenas em futebol”, “há vários outros temas capazes de mobilizar discussões no país, mesmo numa fase em que jornais, revistas, rádio e TV se derramam fartamente sobre o futebol”. De acordo com o periódico, já não se conseguia mais anestesiar a população através do esporte, algo, talvez, nunca plenamente possível, mas muitas vezes imaginado, fosse entre as lideranças políticas do regime ou mesmo entre seus opositores mais radicais.
Mais de trinta anos depois, em meio aos inúmeros preparativos locais para viabilizar a Copa de 2014, nos defrontamos com dilemas sensivelmente semelhantes. Ainda nos indagamos sobre a efetiva inclinação do futebol em sustentar debates sociais mais amplos, arguimos a respeito de seu potencial como território de disputas políticas para além de uma alienação reducionista, e deliberamos quanto aos possíveis usos do mundial, tanto como artifício simbólico quanto como megaevento de notórias dimensões econômicas.
Porém, diante da atual conjuntura do esporte, de sua configuração como espetáculo midiático global, constatamos o tensionamento de muitos dos debates propostos em 1978 em rumos diferentes. Sem dúvida, a passagem de um regime autoritário, mantido sob o espectro da violência e da opressão para um modelo democrático em construção, com todas as falhas intrínsecas ao seu processo de transição / constituição, suscita novas ponderações. Ainda assim, fica claro que muitas das inquietações atinentes aos governos militares ainda encontram ressonância, mesmo de modo diferente, em tempos de administração democrática.
Do mesmo modo, a tarefa de sediar / viabilizar o evento, também promove um deslocamento de perspectiva. As elucubrações sobre o futebol não se restringem apenas as expectativas quanto ao desempenho da seleção nos gramados, embora esta não possa ser negada e, em certa medida, lide com uma pressão ainda maior, mas estende-se para o processo de organização, com a construção de estádios, realização de obras de infraestrutura e a confusão entre o investimento de recursos públicos e privados (verificáveis nas inúmeras concessões financeiras e isenções fiscais). A primazia de instituições desportivas particulares como a FIFA (e a própria CBF) sobre o evento parece deslizar o eixo de uma das problemáticas centrais do debate vigente em 1978.
Não se trata mais de deliberar (somente) sobre a capacidade do esporte em ser instrumentalizado pelo poder público, mas como o futebol, por intermédio do mundial e seus agentes específicos, consegue usufruir deste. Invertem-se as instancias de uma posição de suposta passividade e emaranham-se as posições internas no jogo de disputas de poder. O futebol, sob o formato de instituições privadas de abrangência pública, apropria-se de mecanismos políticos em benefício “próprio”.
Talvez a pergunta “O futebol ainda segura este país?” não seja mais apenas o único meio de verificarmos a relação entre esporte e política no cenário contemporâneo. Parece-me que sugerir a questão inversa, “Este país ainda segura o futebol?”, abarca possibilidades de reflexão igualmente interessantes e necessárias.