sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Fantasmas de Hillsborough assombram Margaret Thatcher



Um dia depois de um informe independente condenar a polícia pela tragédia na qual morreram 96 torcedores em 1989, o ex-chanceler e ex-ministro do Interior do Novo trabalhismo, Jack Straw, acusou a então primeira-ministra Margaret Thatcher de cumplicidade no encobrimento. "O governo precisava que a polícia estivesse do seu lado para reprimir a greve dos mineiros". Margaret Thatcher é um totem conservador: colocá-la no meio do escândalo teria sérias repercussões políticas. O artigo é de Marcelo Justo, direto de Londres.

Marcelo Justo - Londres
Os fantasmas do estádio de Hillsborough não descansam. Um dia depois de um informe independente condenar a polícia pela tragédia na qual morreram 96 torcedores em 1989, o ex-chanceler e ex-ministro do Interior do Novo trabalhismo, Jack Straw, acusou a então primeira-ministra Margaret Thatcher de cumplicidade no encobrimento. “O governo precisava que a polícia estivesse do seu lado para reprimir a greve dos mineiros e outros problemas industriais. Isso criou uma polícia que podia agir com total impunidade”, indicou Straw à BBC.

A investigação independente divulgada quarta-feira obrigou o primeiro ministro David Cameron a pedir desculpas na Câmara dos Comuns pela “dupla injustiça” sofrida pelos familiares que, além de perderem seus entes queridos, padeceram a ignomínia de os verem responsabilizados pelas suas próprias mortes. Segundo a investigação, a polícia de South Yorkshire, encarregada da operação de segurança da partida entre Nottingham e Liverpoll, juntamente com um deputado conservador, o hoje “Sir” Irvine Patnick, foram filtrando informação para os meios de comunicação com o objetivo de estigmatizar os torcedores, descrevendo-os como uns bêbados incontroláveis, responsáveis por todo tipo de tumulto. A estigmatização não teve limites. A infame capa do jornal sensacionalista The Sun acusou os torcedores de roubar dinheiro das vítimas e de urinar nos “valentes policiais” que tinham ido controlar a multidão.

Segundo a investigação, que examinou 450 mil páginas de testemunhos e provas, a primeira ministra Margaret Thatcher sabia que o informe policial era “praticamente uma mentira”. O então chefe de Polícia de South Yorkshire renunciou ao seu cargo, mas o governo conservador não fez nada para desfazer a rede de falsidades que manchou a memória dos mortos. O deputado trabalhista Andy Burnham, um dos políticos que mais lutou junto às famílias para que se conhecesse a verdade, elogiou o atual primeiro ministro David Cameron, mas exigiu que seja feita uma nova investigação. “Normalmente não elogiamos os primeiros ministros conservadores, mas o que David Cameron disse foi muito bem recebido. 

Agora precisamos que haja uma investigação judicial que revogue o veredito de morte acidental e para que se saiba a verdade sobre o encobrimento. Havia uma cultura que tratava os torcedores de futebol e os grevistas como cidadãos de segunda classe”, assinalou Burnham.

Os anos 80, década thatcherista, marcaram o nascimento da violência futebolística protagonizada pelos chamados “hooligans”. Em 1985, em uma partida entre o Liverpool e o Juventus, na Bélgica, morreram 39 pessoas depois que os torcedores do Liverpool derrubaram a barreira que separava os simpatizantes das duas equipes. As autoridades europeias proibiram a participação de equipes inglesas em competições continentais durante cinco anos e a dos torcedores do Liverpool durante sete anos.

Mas os anos 80 foram também época das greves dos mineiros e de outros conflitos trabalhistas no marco da política de privatizações e desregulação do governo de Margaret Thatcher. A repressão policial da greve dos mineiros, considerada crucial para quebrar o poder dos sindicatos, e a perseguição de trabalhadores em suas próprias casas marcaram para muitos o fim de uma visão social idílica na qual a polícia era vista como uma força imparcial e equânime, encarregada de proteger a sociedade em seu conjunto.

O informe independente produziu uma cascata de pedidos de desculpas. No editorial desta quinta-feira, o jornal The Sun lamentou “nosso mais grave erro”. O prefeito de Londres, Boris Jonson, fez o mesmo por causa de um editorial publicado no “Spectator” em 2004. O Procurador Geral Dominic Grieve tem que decidir agora se abre uma nova investigação para mudar o veredito de morte acidental. Isso poderia abrir as portas para um julgamento dos responsáveis pelas falhas de segurança e por seu acobertamento.

A dimensão política de Hillsborough será um osso duro de roer. Diferentes figuras conservadoras da época, como Sir Norman Tebbit ou David Mellor, criticaram duramente as declarações de Jack Straw. Ao mesmo tempo, os familiares exigem que seja revogado o título de “Sir” concedido ao então deputado conservador Irvine Patnick que esteve no centro da campanha de desinformação e que se inicie uma investigação sobre o processo de encobrimento. Margaret Thatcher é um totem conservador: colocá-la no meio do escândalo teria sérias repercussões políticas.

Tradução: Katarina Peixoto


Sugestão e comentário de Jhonatan Souza.

A guinada neoliberal tem em 1989 um ano marcante. Isso é verdade na política (com a queda do Muro de Berlim e o subsequente desmonte do socialismo real, tanto em sua estrutura burocrático-estatal como no imaginário de diversos militantes espalhados por todo mundo), na economia (com o celebrado - pelo menos até a crise de 2008 - Consenso de Washington) e, guardadas as devidas proporções, no futebol com a tragédia de Hillsborough e com o relatório Taylor Report (1990) e suas consequências para sub-cultura torcedora com o fim dos "terraces" (no Brasil com o fim das gerais), na reestruturação dos estádios e nos experimentos de vigilância e disciplinarização do espaço "público" ensaiados nesses estádios. No Brasil, país afeitos aos eufemismos, o neoliberalismo (nos três âmbitos destacados) ganhou o nome de "modernidade" e teve início uma constante busca pelos patamares ditos avançados da política (ou tecnocracia?), da economia de mercado e do futebol indústria. Essa busca é nítida, mais do que nunca, nos discursos em torno da realização da Copa do Mundo de 2014 e nos modelos de estádio (pós-Taylor Report) pretendidos pela FIFA para o Brasil. Mas, como dizia Carlo Ginzburg, quando fechamos a porta à história ela tende a voltar pela janela. De algum modo foi isso que aconteceu nessa semana a partir do relatório alternativo sobre Hillsborough, desvelando uma articulada relação entre a polícia, a administração Tatcher e alguns tabloides britânicos, notadamente o The Sun, afim de culpabilizar os mortos pelo seu trágico fim. Não custa lembrar que o The Sun faz parte do grupo News Corporation de Rupert Murdoch, empresário que ficou conhecido ano passado por suas ligações com o alto escalão do governo britânico e com a polícia local que facilitaram a estruturação de uma verdadeira rede de grampos que punha em vigilância constante diversos setores da sociedade inglesa. Igualmente conhecidas são as relações entre Murdoch e Tatcher, esta que teria facilitado a compra de alguns periódicos por parte de Murdoch em troco de ver estampado nas páginas desses periódicos uma verdadeira campanha de difamação das liderança sindicais (em especial a dos mineradores), legitimando as ações repressivas do policiamento britânico frente às greves gerais, que impunham obstáculos para a implementação da agenda neoliberal no país. Assim, não é de se estranhar o esforço lançado pelo The Sun em difamar os torcedores de Hillsborough encobrindo o descaso policial no evento, haja vista que, como lembra Andy Burnham: " Havia uma cultura que tratava os torcedores de futebol e os grevistas como cidadãos de segunda classe." As revelações renderam pedidos de desculpa do primeiro ministro David Cameron e no domingo, antes do jogo do Liverpool, 96 balões serão lançados aos céus em homenagem às vítimas. Na terra, além dos corpos dos mortos, fica o legado de toda uma reestruturação do futebol e da perseguição de uma cultura torcedora fundamentadas em laudos fictícios. Nem só o Brasil tem suas intentonas!