terça-feira, 5 de novembro de 2013

Mané Garrincha e a modernidade do futebol brasileiro



por Luiz Carlos Ribeiro

“Sem jogo há um mês, Mané Garrincha se sustenta com Beyoncé”. Quando li essa manchete no meu computador, hoje pela manhã, ainda no bocejo de uma noite bem dormida, uma confusão se fez na minha cabeça. Imaginei se não se tratava de alguma brincadeira inoportuna, das muitas que circulam pela internet. A notícia estaria uns quarenta anos atrasada, e a personagem não seria essa tal de Beyoncé, mas a sambista Elza Soares.

Segundos foram suficientes para me tirar da letargia matinal e perceber o absurdo que havia se passado pela minha cabeça. O Mané Garrincha a que se referia a notícia não é o nosso ídolo das copas de 58 e 62, mas o estádio de futebol que leva seu nome, na Capital Federal. É a cantora não era, por decurso, a Elza Soares, mas outra, bem mais jovem, que certamente não tem a mínima noção do que foi a polêmica relação Mané Garrincha/Elza Soares, do final dos anos 60 e início de 70.1

O affair Mané Garrincha/Beyoncé a que se refere a reportagem não é de caráter afetivo, mas econômico, analisando o fiasco esportivo-financeiro dos investimentos feito no estádio, na sua maioria com recursos dos governos federal ou distrital.2 Apenas mais um exemplo, como poderia ser o da cidade de Manaus ou de outros estádios padrão FIFA. Caros e sem qualquer racionalidade econômica ou social, se pensarmos na perspectiva de uma sociedade democrática e moderna, como pretende ser a brasileira.

Estabelecida a lucidez, defrontei-me com outra notícia, está referente à realização do 1° Fórum de Gestão de Arenas e Estádios, organizado por empresas de consultoria e empreendimentos esportivos. Claro, um evento com uma inscrição de valor elevado, pois afinal destina-se a homens de negócios do mundo esportivo. Alias, no jargão da economia liberal não se diz mais taxa de inscrição, mas “valor do investimento”. Uma mistura das pregações do pastor Malafia com os liberalismos do mercado, pois agora você não mais “paga seus pecados”, mas “investe na sua salvação”.

Na apresentação do referido Fórum de Gestão de Arenas e Estádios, os organizadores argumentam que o principal objetivo do evento é “trazer as soluções e ideias para tornar nossas arenas tão rentáveis quanto as arenas dos EUA e Europa”.

Para ter certeza de que estava acordado, voltei a ler a notícia sobre o Mané Garrincha e a Beyoncé, e comecei a me perguntar se a propalada modernização do futebol brasileiro não passa de uma remasterização (agora digital e em 3D) do velho coronelismo patrimonialista do tempo em que o Garrincha, moleque, jogava bola nos terrenos de chão batido em Pau Grande, sua cidade natal.

Ou seja, a sociedade brasileira investe milhões de recursos públicos na construção de estádios absolutamente irracionais, tanto do ponto de vista social, financeiro quanto esportivo, e um grupo de empresários, na maior cara-de-pau, organiza um evento para discutir soluções e ideias para tornar as mesmas arenas racionalmente rentáveis.

Tenho a forte impressão de que temas como transparência e compromisso social não farão parte da agenda do referido evento. E que o conceito “nossas arenas” não tem nada a ver com a tradição liberal-iluminista do interesse coletivo. Começamos a descobrir que o “João bobo” somos nós, cidadãos comuns, não os zagueiros adversários a que se referia Mané Garrincha, após aplicar seus dribles desconcertantes.

[1] Para os mais jovens sugiro a reportagem da revista Veja, de 08 de março de 1972: http://veja.abril.com.br/idade/exclusivo/250603/garrincha02.html