quarta-feira, 27 de novembro de 2013

"Prefácio para Nilton Santos" - Por Armando Nogueira



Hoje se apagou mais uma luz da constelação de estrelas solitárias que representaram o Botafogo e o futebol brasileiro. Nilton Santos, a Enciclopédia do Futebol, que sofria do assombroso Mal de Alzheimer, teve decretado seu silêncio em definitivo.

Porém, é preciso celebrar a vida. A vida que tornou Nilton Santos inesquecível. Para saber mais sobre o ex-jogador, vale a pena conferir o post do blog Literatura na Arquibancada [http://www.literaturanaarquibancada.com/2012/05/nilton-santos-enciclopedia.html], publicado em 15 de maio de 2012, quando Santos completava 88 anos de vida. 

Vale a pena, ainda, ler o prefácio que o saudoso e impecável Armando Nogueira escreveu para o livro "Minha Bola, Minha Vida" (1998).

"Prefácio para Nilton Santos" - Por Armando Nogueira
[Sugestão de Natasha Santos]

O futebol de Nilton Santos tinha de acabar consagrado em livro. Não fosse ele a “enciclopédia do futebol”, assim chamado justamente, pela dimensão fulgurante de seu talento. Desde Domingos da Guia, que jogava com a altivez das estátuas, o mundo não via um zagueiro tão perfeito como Nilton Santos. Era um jogador de exceção. Tinha o dom de aveludar a bola quase sempre áspera que ronda uma pequena área. Dominava, como ninguém, tanto a arte de fazer como de evitar um gol. Antes dele, nenhum zagueiro ousara ir à frente, com galas de atacante. Pois ele cometia essa doce imprudência com a espontaneidade dos gênios da bola.

Nilton Santos nasceu atacante. Jogava de ponta-esquerda nas peladas da Ilha do Governador.

Um dia, desembarca de um ônibus na porta do Botafogo, com um par de chuteiras velhas embrulhadas numa folha de jornal dormido. 

É apresentado a Carlito Rocha, um místico do futebol cuja alma botafoguense oscilava entre a fé católica e o fervor de uma boa macumba. 

Depois de breve diálogo, o bruxo alvinegro decretou que Nilton Santos seria zagueiro e não ponta-esquerda. 

E deitou profecia: “Na defesa, você será campeão carioca, será campeão brasileiro e campeão do mundo”.

Palpite, premonição, seja lá o que for, Carlito Rocha viveria ainda o bastante para ver integralmente cumprido o destino do ilustre personagem. Essa curiosa história abre o capítulo “General Severiano”, o segundo do livro Minha Bola Minha Vida, em que mestre Nilton repassa a sua vida, numa linguagem simples e transparente como o seu imenso futebol. Ler esse livro é um reencontro com a figura lendária da saga botafoguense. É reviver, de pleno coração, a epopeia do bicampeonato do mundo que libertou a alma do futebol brasileiro.

Escrever o prefácio deste livro é apenas a extensão de um privilégio que a vida me concedeu. Nilton Santos foi meu segundo ídolo do futebol botafoguense. Antes dele, minha fantasia me projetava na figura épica de Heleno de Freitas. Com o tempo, tornei-me jornalista. Já não podia mais viver o deslumbramento de simples torcedor. Graças a uma rígida formação ética, passei a ver Nilton Santos não mais com o olhar arrebatado do fã, mas com a visão contida do crítico. E, aí, então, pude perceber a expressão enciclopédia do seu futebol. Nilton exercia, com perfeição, todas as artes do jogo. Driblava bem, passava melhor, ainda. Jamais foi traído pelo “quique” de uma bola. Herdeiro de Domingos da Guia, ele anestesiava o atacante antes de tomar-lhe a bola, reverente, sempre.

Passaria à história como a fulgurante prefiguração de todos os laterais, hoje, alas, do futebol mundial. 

Seu segredo? 

Ele próprio me confessaria, minutos depois de sagrar-se bicampeão do mundo no Chile, em 1962:

“Sou amigo de infância de todas as bolas deste mundo”.