quarta-feira, 27 de março de 2013

Remoção forçada da Aldeia Maracanã: não é assim que se faz uma Copa do Mundo


Hoje de manhã fomos surpreendidos com a notícia da remoção violenta da Aldeia Maracanã, que ocupava o antigo Museu do Índio, nas imediações do estádio do Maracanã, no Rio de Janeiro. Reproduzo abaixo um texto da professora Fernanda Sánchez, da Universidade Federal Fluminense (UFF), sobre o ocorrido.

É assim que se faz uma Copa do Mundo?

Por Fernanda Sánchez*

Nesta sexta-feira, o Batalhão de Choque da Polícia Militar invadiu a Aldeia Maracanã, antigo Museu do Índio, e agiu com extraordinária truculência. Os policiais  jogaram bombas de efeito moral, gás lacrimogêneo, gás pimenta, bateram nos manifestantes e prenderam ativistas e estudantes. A Aldeia estava ocupada desde o ano de 2006 por grupos representativos de diferentes nações indígenas que, nos últimos tempos, diante do projeto de demolição do prédio (para aumentar a área de dispersão do Estádio do Maracanã, estacionamento e shopping), vinham resistindo.
As lideranças indígenas são apoiadas por diversos movimentos sociais, estudantes, pesquisadores, universidades, comitês populares, organizações nacionais e internacionais de defesa dos Direitos Humanos, redes internacionais e outras organizações da sociedade civil. A luta dos índios e o conflito estabelecido entre o governo e o movimento resultaram num importante recuo do governo, que diante da pressão social desistiu da demolição do prédio e passou a defender a sua “preservação”. A desocupação do prédio foi decretada, com hora marcada. Os índios, no entanto, continuaram a resistir, apoiados por diversas organizações.
Certamente essa posição política ensina muito mais aos cidadãos cariocas e ao mundo sobre preservação, direitos e cidades do que as violentas ações que vêm sendo mostradas nos diversos meios. Para os índios e para as organizações sociais que os apoiam, preservar o prédio vai muito além de preservar sua materialidade. A essência da preservação, neste caso como em muitos outros, está na preservação das relações sociais, usos e apropriações que lhe dão sentido e conteúdo. Seria um exemplo para o Brasil e para o mundo a preservação da Aldeia Maracanã, o reconhecimento de seu uso social e a pactuação democrática acerca da reabilitação arquitetônica do edifício.
Cada vez que se comete um ato de violência que coloca em risco a integridade de um grupo social indígena, se esfacela sua cultura, seu modo de vida, suas possibilidades de expressão. É uma porta que se fecha para o conhecimento da humanidade, como dizia Levi-Strauss. É essa a Copa do Mundo que o governo quer fazer? É esse espetáculo da violência, a lição civilizatória que o Rio de Janeiro tem para mostrar ao mundo? A política-espetáculo tem um efeito simbólico: mostrar que o avanço do projeto de cidade, rumo aos megaeventos esportivos, far-se-á a qualquer custo.
Direitos humanos, democracia e pactuação estão fora da agenda deste projeto de cidade. Os manifestantes, em absoluta condição de desigualdade frente à força policial e seu aparato de violência, lançaram mão de instrumentos bem diferentes daqueles utilizados pelo Batalhão de Choque: ocuparam o prédio para apoiar os índios, resistiram à sua desocupação e manifestaram, no espaço público, nas ruas e avenidas do entorno do complexo do Maracanã, sua reprovação e indignação frente à marcha violenta desta política.
*Fernanda Sánchez é professora da UFF e pesquisadora sobre megaeventos e as cidades.

Sugestão e comentário de Jhonatan Souza.

Hoje, a comunidade brasileira dos historiadores e antropólogos amanheceu em luto com a notícia do falecimento de um dos mais importantes especialistas em história indígena desse país, o diretor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, professor John Manuel Monteiro. Além de professor e pesquisador, Monteiro - nascido nos EUA e radicado no Brasil - era um ativista da causa indígena. Sua investida mais recente, junto às professoras Maria Helena Machado e Lilia Schwarcz, foi contra o perigoso projeto das Ices (Instituto Comunitário de Ensino Superior) contemplado no interior do Projeto de Inclusão com Mérito (?) no Ensino Superior Público Paulista (Pimesp) - projeto elaborado às pressas, sem o debate necessário no interior da comunidade acadêmica, que estabelece uma etapa intermediária que retardaria em dois anos o ingresso dos estudantes cotistas nas universidades pública do estado de São Paulo, transmutando o debate social para os níveis da meritocracia, bem ao gosto da classe média paulistana (para maiores informações: http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/1244586-tendenciasdebates-cotas-em-dialogo.shtml). No mês da morte do afamado historiador, seus principais personagens - as populações indígenas - não tem muito o que comemorar. A remoção forçada e violenta, na Aldeia Maracanã, das lideranças indígenas e militantes apoiadores da causa, mostra que, de Cabral a Cabral (o navegador e o governador), a situação dos Negros da Terra (para usar uma expressão de Monteiro) continua difícil. Os megaeventos esportivos, filhos primogênitos do "esporte (anti)moderno", têm servido como uma luva à reordenação espacial do capital, como assinalou o geógrafo David Harvey, em recente palestra proferida em São Paulo e intitulada "Marx: a criação destruidora". No Brasil, a lógica não tem sido outra, como assinalam as professoras Raquel Rolnik da USP (dona do blog) e Fernanda Sánchez da UFF, esta que assina o texto "É assim que se faz uma Copa do Mundo?" abordando o caso da remoção forçada da Aldeia Maracanã. A pergunta, aliás, é tema das Jornadas Bolivarianas desse ano, que acontecerão entre os dias 09 e 12 abril em Florianópolis, com a presença de diversos pesquisadores nacionais e internacionais que se dedicam ao estudo dos megaeventos esportivos. A proibição ao acarajé das baianas (tratado no último post desse blog) e a desapropriação da Aldeia Maracanã, demonstram, a carne viva, os limites da "democracia racial" brasileira, cujo futebol de Pelé's e Garrincha's seria sua expressão mais bem acabada, segundo uma certa abordagem. Se existe algum fundo de verdade na famosa assertiva de que o "futebol explica o Brasil", certamente ele não explica o Brasil flamboyant de Gilberto Freyre - frequentemente ressuscitado nas crônicas esportivas ou nas falas dos intelectuais Magnoli's - do pacto harmônico das raças. Se o futebol explica algum Brasil, é aquele onde o ouro ainda é lavado em sangue negro, seja da África, seja da terra.