sábado, 27 de abril de 2013

Histórias Incríveis: os tiros de João Saldanha que Manga não esquece


No dia do goleiro, ex-arqueiro do Bota relembra episódio em que precisou pular um muro do Mourisco para fugir dos disparos do comentarista.

João Saldanha (Foto: Ag. Estado)


João Saldanha não costumava levar desaforo para casa. Chamado até de João Sem Medo, o comunista assumido participou de guerrilhas e greves. Em um dos atos mais ensandecidos, aceitou o desafio de treinar a seleção brasileira um ano antes da Copa do Mundo de 1970, em meio a uma ferrenha ditadura militar. Política à parte, o comentarista esportivo era capaz de sacar uma arma e alvejar o goleiro do seu time de coração, inclusive indicado por ele para o clube. Foi assim que deixou marcada uma das histórias mais incríveis do futebol. Coube a Manga, assustado, pular um muro de quase três metros, segundo relatam pessoas que estiveram no Mourisco, sede náutica do Botafogo, no dia 19 de dezembro de 1967. A data era comemorativa. Os jogadores alvinegros festejavam a conquista de mais um título do Campeonato Carioca quando o som da bala era tudo que se fazia presente no local do Jantar da Vitória (como era tratado o evento). 

O apertar no gatilho persegue Haílton Corrêa de Arruda 45 anos depois. Nesta sexta-feira, Dia do Goleiro, Manga completa seu 76º aniversário. E, por mais que se sinta incomodado com o assunto, justificou-se, rebatendo as insinuações de que estaria vendido naquele jogo contra o Bangu, apesar da vitória por 2 a 1 ao apito final.

- Isso nunca. Ele (João Saldanha) desconfiou. Disse isso na televisão. Disse isso no programa dele. Aí as coisas terminaram muito difíceis para ele e para mim - defendeu-se Manga, que hoje mora no Equador e mistura o português com o espanhol ao conversar.

Voltando a fita para dois dias antes do episódio do tiro. Botafogo e Bangu jogavam no Maracanã. A atuação do goleiro deixava dúvidas no comentarista João Saldanha, falecido em 1990, aos 73 anos, vítima de um enfisema pulmonar. Existia no ar uma desconfiança de um suposto suborno oferecido pelo então presidente do Bangu, o bicheiro Castor de Andrade - também já falecido. Na transmissão da TV em que trabalhava, Saldanha questionou algumas saídas atabalhoadas do arqueiro em busca da bola. E mandava a pulga para trás da orelha de quem assistia à vitória do Botafogo.

- Estava chovendo bastante. Toda bola era difícil. Como o João era o comentarista, estava dizendo que eu soltava muita bola e desconfiou. Eu, como profissional, fiz minha apresentação, e ganhamos o jogo - relatou Manga.

- Não sei se corromperam (o Manga) ou não em dinheiro, mas com ameaça de morte foi de uma forma visível. Ele estava aterrorizado. Se estou lá (no Botafogo), não deixo ele jogar - contou Saldanha em uma entrevista ao programa "Roda Viva", da TV Cultura, alguns anos depois.


Correio da Manhã registra o dia em que houve os
disparos (Foto: Arquivo / Correio da Manhã)

Mas foi outro personagem que correu atrás do prejuízo após a partida. Castor de Andrade, munido de seus seguranças, invadiu a televisão para tirar satisfação.

- O fundamental foi o espancamento violento, como nunca vi, de um grupinho de torcedores que saíram com as bandeiras no fim (do jogo). (Os seguranças) Cercaram e arrebentaram. Espancadores da mais alta qualidade. Aí botei a boca no mundo. Invadiram a televisão, armados, o Castor e mais uns quatro. Mas a polícia abafou - dizia Saldanha.

Destemido, Saldanha não se intimidou. Com a situação sob controle, ouviu de um dos seguranças da TV um conselho: guardar uma arma para se defender em caso de retorno dos comparsas de Castor. Voltou para casa. Acordou de manhã cedo na segunda-feira pós-decisão, às 7h. Recebeu a visita de um jornalista que já tivera ajudado a tirar “de uma sujeira que ele fez em São Paulo”. O tal jornalista estaria em uma reunião em que ficou combinada a armação para João Saldanha aparecer na festa da comemoração, terça, e ser surpreendido por dois seguranças que o agarrariam para Manga agredi-lo. A cena toda seria registrada pelos veículos da imprensa, contava Saldanha.

Antes da festa no Mourisco, porém, a imprensa cobrava satisfação do goleiro. O clima era de apreensão.

- Nos outros jornais, tinha um (jornalista) que entrevistou o Manga e dizia: “Vai ficar assim, Manga?”. O Manga não dizia nem sim, nem não. “Mas isso não pode ficar assim” (dizia o jornalista). Eles incentivando e armando - relatou o comentarista ao programa "Roda Viva".

Inicialmente, Saldanha não era afeito a aparecer no local. Até que o sangue ferveu um pouco e as raízes de combatente falaram mais alto.

- Eu estava pensando: se for lá, tenho que matar um; se não for, vou ter que matar uns oito. Então é melhor eu ir. Agarrei dois ferros, botei na cinta e fui para lá cedo.

Contou o próprio que o circo estava armado para começar às 20h, logo após a "Voz do Brasil" (programa radiofônico que vai ao ar durante a semana, de 19h às 20h). Ele chegou mais cedo, 19h. Havia crianças com suas mães no pátio. Escondeu-se embaixo de um Volkswagen, longe da alça de mira dos seguranças. Manga chegou às 19h30m acompanhado por dois companheiros de clube. Transcorria tudo normal. Até João Sem Medo aparecer, como recorda o ex-ponteiro Jairzinho, colega de Manga no Botafogo.

- Quando estava tudo transcorrendo na maior normalidade, surge o Saldanha. Como se fosse um bandido entrando naquela casa, como no faroeste. Estava um barulho terrível, todo mundo falando. Por coincidência, eu estava no grupo que estava com Manga. Não sabíamos que o João ia aparecer. As vozes foram diminuindo de volume, até que de repente o Manga sentiu que paramos de falar e olhou para trás. Ele viu o Saldanha caminhando de encontro a ele. Quando chegou mais ou menos a uns seis passos, o Saldanha sacou um revólver que nunca vi tão grande. Falou para o Manga: “Se der mais um passo, será um homem morto.” O Saldanha deu dois tiros para baixo e um para cima. Lá havia um muro com quase três metros. Nunca vi alguém saltar tão alto. Nem o campeão de salto triplo - relembrou Jairzinho.

- Vai sair sangue, mas é o teu, seu filho... Dei dois tiros, mas sem muita vontade nem de errar nem de acertar. A minha intenção era a seguinte: ele vai correr para onde? Vocês imaginavam onde estavam as câmeras e os seguranças. Aí eu dava um tiro na bunda. Mas ele correu para o outro lado, onde estavam as mulheres e as crianças. Eu não sou pistoleiro, não dei - contava Saldanha.

Ele ainda disparou contra os aparelhos de TV que registravam o momento. Apagou as imagens com o disparo, viu um câmera largar tudo para salvar a vida. Foi capaz até de disparar para afastar de perto o sobrinho Bebeto de Freitas, ex-presidente do Botafogo.

Manga já havia fugido para a rua, assustado. Registrou o caso na 10ª Delegacia Distrital, de Botafogo, na manhã seguinte. Segundo o "Correio da Manhã", o ex-goleiro relatou ao delegado que, no momento em que foi chamado por Saldanha, acreditava em um pedido de desculpa pelos comentários feitos no dia da decisão. Contou o susto ao ver Saldanha sacar a arma. O caso foi entregue ao departamento jurídico do Glorioso da época. No ano seguinte, ele foi negociado com o Nacional, do Uruguai. Saldanha dizia ter ajudado na transferência. Manga não guarda mágoas.

- Depois conversamos e nos acertamos, ficou tudo bem. Ele sabia da denúncia na delegacia, mas não tinha nada. Para um profissional como eu, que sempre jogava machucado, o importante era o respeito que tinha pelo meu clube - disse o ex-goleiro.

Hoje com residência no Equador, Manga completa seus 76 anos de idade ao lado da esposa Cecília. Costuma misturar o espanhol com o português. Mas essa história não precisa de tradução. O som da bala basta. E ele parece ainda incomodado. Pouco importa. Haílton Corrêa de Arruda quer ser lembrado pelas grandes defesas. Essas, inclusive, que fizeram o Dia do Goleiro passar a ser no mesmo dia do seu aniversário.

Manga jornal Correio da Manhã caso Botafogo  (Foto: Arquivo / Correio da Manhã)
Manga foi à delegacia registrar o caso, como conta o jornal (Foto: Arquivo / Correio da Manhã).



Sugestão e comentário de Natasha Santos.

Esta é mais uma daquelas histórias curiosas a respeito do intempestivo temperamento de João Saldanha. Todavia, imagino que a publicação de tal reportagem -- sobretudo com a ênfase na "militância" de Saldanha, ao início do texto --, parece trazer mais relações com as  recentes polêmicas vinculadas a José Maria Marin, do que propriamente ao dia do goleiro ou ao inusitado da história. Se o então presidente da CBF figura enquanto o homem que participou da morte do jornalista Vladimir Herzog, contando com livro de 50 mil assinaturas para a sua exoneração do cargo, João Saldanha é (antes mesmo de se tratar de inclinações políticas) resultado de uma típica tradição inventada, que representa o ápice da luta contra o regime ditatorial brasileiro, por meio, sobretudo, do esporte. E seria com base nesse ícone "saldanhesco" que se poderia pensar no embasamento para uma limpeza ideológica nas bases do futebol brasileiro -- ainda que por meio de representações não tão claras, por parte da mídia.