terça-feira, 10 de julho de 2012

Apresentação da obra "Gol de Letra: Crônicas Esportivas e Sociedade Brasileira"


Os organizadores do livro "Gol de Letra: Crônicas Esportivas e Sociedade Brasileira", Miguel A. Freitas Junior e André Mendes Capraro, fazem um breve comentário sobre as crônicas e o sua utilidade para o estudo da sociedade e, brevemente, apresentam os autores dos textos selecionados e seus respectivos estudos.
Clique no link abaixo para ter acesso à apresentação da obra.


A crônica é um gênero literário que acendeu no Brasil no início do século XIX, derivada dos populares folhetins. Fortalecida com a fundação dos primeiros periódicos de ampla circulação na Capital Federal, o Rio de Janeiro, e outras cidades como Recife, Salvador e São Paulo. Mais do que a coincidência temporal, a crônica surgiu dentro das próprias redações. Publicadas diariamente, tratavam-se neste início de comentários pessoais, polêmicos ou jocosos de temáticas cotidianas (Candido et. al., 1992: 14-15).  
Definida como uma mescla de literatura, jornalismo, vida social e cotidiana, sem um compromisso mais perene com o fato, é um dos poucos gêneros literários tipicamente brasileiros[1]. É interessante observar que nos demais países o folhetim não se transformou em crônica, aproximando-se mais do gênero conto. Uma hipótese cabível para este fenômeno é que o leitor brasileiro de jornais se identificou com o escrito, aceitando de forma mais pacífica o tom jocoso, satírico, debochado e até certo ponto cruel, características típicas das crônicas.   
O vínculo entre a crônica e os jornais – e posteriormente as revistas – nunca se desfez. Provavelmente, a crônica tenha surgido como uma necessidade de ajuste do campo literário brasileiro. Explica-se: como o contingente populacional letrado era significativamente pequeno[2], os escritores brasileiros eram obrigados a buscar alternativas para obter seus rendimentos. Desta forma, a crônica surge como um complemento à carreira dos grandes nomes da literatura nacional.
Neste sentido, a crônica poderia ser considerada um gênero de grandeza menor. Todavia, por mais paradoxal que seja, é exatamente neste ponto que reside sua riqueza. Segundo Antonio Candido, “uma inesperada embora discreta candidata à perfeição” (Candido et. al., 1992: 13).  
A “perfeição” de Candido pode estar relacionada ao caráter eclético. Dos mais variados movimentos e gêneros: do romantismo ao modernismo, da prosa à poesia parnasiana, do realismo ao simbolismo, do teatro ao rádio, enfim, escritores expoentes de todas as escolas literárias contemporâneas se dedicaram à escrita do gênero crônica.
Valoriza-se então a diversidade, tanto de temas quanto de conteúdos presentes no gênero crônica. Singela, enxuta, breve (o suficiente para que o leitor fique ansioso para ler a próxima), recorrente (quase sempre, será sucedida por uma próxima), a crônica guarda sua especificidade: tem um caráter provisório, inacabado, de momentaneidade. Ao contrário do romance que apresenta um desfecho após o clímax, ou do conto que não tem um sentido contínuo, a crônica se auto-ajusta, pois, do presente (aquela que foi publicada hoje) se expõem os pré-requisitos para as próximas que virão. Ela pode prender tanto quanto um outro fenômeno cultural tipicamente brasileiro que iria surgir décadas depois: as telenovelas[3].  
A relação do esporte com a imprensa, especificamente com a crônica esportiva escrita, desde o final do século XIX e as primeiras décadas do XX, demonstra vínculos interdependentes imprescindíveis para análises pautadas no binômio sócio-cultural. Observando a interseção de tais campos – literário e esportivo – visualizar-se-á, no transcorrer do século XX, um processo dinâmico, em constante alteração, ligado a variadas e ecléticas questões importantes na história da sociedade brasileira, como a transição de níveis sociais, a assimilação de bens culturais europeus, o nacionalismo, a formação de identidades, a autonomia da arte, a hegemonia esportiva do futebol, e a profissionalização (tanto do esporte quanto da própria crônica especializada).
Constatada a forte relação entre estes dois elementos substanciais na cultura brasileira, o esporte e a crônica literária, é que se surgiu a idéia de organizar esta coletânea. Realizando um estudo mais aprofundado no que tange a relação entre o esporte e a literatura nacional, principalmente o futebol, modalidade esportiva que detém a predileção dos brasileiros e também dos literatos esportivos. Tal atitude justifica-se pelo fato de que estes temas geralmente, são pesquisados de forma segmentada, pois, no caso da crítica literária, o esporte/futebol é considerado apenas um assunto secundário na literatura nacional; da mesma maneira que, no outro extremo, alguns pesquisadores da História e Sociologia do Esporte utilizam os escritos literários como simples fontes para ilustrar o contexto esportivo/futebolístico, descaracterizando a natureza da obra e as características do autor.    
Esta coletânea foi organizada a partir das discussões ocorridas em diferentes congressos científicos das áreas de historiografia, antropologia e sociologia do esporte. Nestes eventos percebeu-se que pesquisadores oriundos de diferentes localidades do Brasil estavam abordando acontecimentos significativos na história política, social e esportiva, tendo a crônica como principal fonte de pesquisa.
            Isto levou à percepção de que este gênero literário, que durante muito tempo foi considerado uma fonte de consulta de pouca importância, começava a conquistar o seu espaço, principalmente junto aos pesquisadores das áreas de Ciências Humanas e Sociais, os quais visualizaram neste tipo de documento uma possibilidade para compreender o cotidiano de um determinado contexto social. Tal fato motivou os organizadores a reunir tais pesquisadores e sistematizar as respectivas produções em um livro que pudesse auxiliar os profissionais das diferentes áreas do conhecimento que se preocupam com a análise da sociedade brasileira em diferentes momentos históricos.
Diante da característica didática que assume esta obra, optou-se em dividi-la em duas seções interdependentes e complementares. Na primeira seção, intitulada “Aspectos históricos da Crônica” o leitor irá encontrar cinco textos distintos que lhe possibilitarão perceber a origem da crônica no Brasil, bem como o processo que resultou na sua aceitação como fonte de pesquisa. É o que apresenta o historiador Luiz Carlos Ribeiro, ao realizar uma abordagem conjuntural deste gênero no contexto brasileiro. Partindo de uma leitura refinada do crítico literário Antônio Cândido, Ribeiro explicita o lugar ocupado pela crônica no campo literário e jornalístico, destacando a influência da crise de paradigma vivenciada pela história (1970/80) como um fator que possibilitou a abertura do campo de pesquisa para busca de outras fontes e objetos. Foi com base neste contexto, que os pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento acabaram redescobrindo toda a riqueza contida nas crônicas, bem como a possibilidade de perceber as tensões e disputas de poder presentes na sociedade, através de análises feitas no campo esportivo Diante destas novas possibilidades, o autor chama a atenção para a necessidade dos pesquisadores tomarem alguns cuidados metodológicos necessários para quem vai utilizar este tipo de documentação.         
   O texto de Victor Andrade Melo apresenta a forma com que alguns literatos relataram a introdução e a difusão do remo e do turfe, primeiras práticas corporais a chamarem a atenção dos intelectuais que escreviam para os jornais cariocas do final do século XIX. As crônicas daquele momento iam de encontro ao objetivo dos periódicos, que era o de fornecer informações para os seus leitores. Melo demonstra que os cronistas utilizaram as páginas dos jornais para mostrar as transformações pelas quais estavam passando a sociedade e a forma com que as novas práticas corporais estavam sendo incorporadas ao cotidiano da sociedade. Este processo vai sendo re-atualizado e recebe um tratamento significativo no texto de André Mendes Capraro, no qual o autor mostra que no século XX a crônica se tornou um espaço de debate e disputa de poder que permeou os campos literário e esportivo, fato que mantinha a atenção dos leitores sempre ávidos para saber qual seria o desfecho da discussão travada entre intelectuais de grande notoriedade. Além disso, o autor chama a atenção para a questão do envolvimento dos cronistas com seus escritos, algo típico de um gênero em que os limites para a criação não estavam bem definidos e a proximidade dos escritores/torcedores com o objeto abordado era algo bastante tênue. Diante desta passionalidade, o resultado quase sempre era um acalorado debate expresso nas páginas dos jornais, no qual os sentimentos dos literatos eram expressos de maneira áspera e direta, gerando inúmeras tensões e ressentimentos.
            Na sequência do capítulo apresentou-se o texto de José Carlos Mosko. Este trata do momento em que o pesquisador demonstra como se deu a aproximação da crônica com as práticas esportivas, mas especificamente com o futebol. Não se trata de encontrar um grande herói responsável por este acontecimento, mas sim de verificar o processo tenso pelo qual os intelectuais brasileiros foram se tornando adeptos deste gênero literário, que conquistou o público leitor, bem como os escritores que tinham liberdade para apresentar as suas opiniões sobre o seu time do coração, tendo como pano de fundo o debate ideológico em torno de temas como identidade nacional, miscigenação, influência da cultura estrangeira, entre outros assuntos que acompanharam a historiografia brasileira durante todo o século XX. Em síntese, pode-se dizer que neste capítulo, mostrou-se o processo pelo qual a crônica se tornou um meio de difusão de idéias e projetos de alguns grupos intelectuais brasileiros.
 Por último, a pesquisadora Natasha Santos apresenta uma análise bastante criativa das crônicas de Nelson Rodrigues acerca do futebol. Jornalista, teatrólogo e escritor renomado, na mesma proporção em que era polêmico, Nelson Rodrigues foi um analista atento do futebol. E, como poucos, sob o interpretar sob a ótica da sua representatividade como elemento da cultura brasileira. Por meio da análise das fontes, Santos acentua o quanto a popularidade de Nelson Rodrigues contribuiu para reforçar o ideal de identidade nacional formulada por Gilberto Freyre e amplamente difundida por Mario Filho.  
O segundo capítulo fornece alguns exemplos práticos de como se trabalhar com a crônica esportiva, para isto foram utilizados três estudos que tratam de momentos marcantes na história esportiva, social e política do Brasil. O primeiro deles refere-se a Copa do Mundo de 1950, que foi realizada no próprio país, no qual a derrota do selecionado nacional frente ao olhar atônito de 200 mil pessoas, foi algo tão significativo que até hoje permanece no imaginário coletivo, reforçando muitos mitos criados pelos cronistas daquele momento. Esta foi a tônica do texto apresentado por Miguel Archanjo de Freitas Jr, no qual o pesquisador foi mostrar a consolidação da “cultura da desculpa” como uma estratégia discursiva para tentar minimizar o fracasso de uma nação que desejava ser vitoriosa, moderna e forte, mas que sucumbiu no momento decisivo, trazendo à margem muitas das questões culturais que eram mal resolvidas na sociedade brasileira, as quais foram utilizadas pelos cronistas muitas vezes de forma romanceada, para fazer com que os brasileiros continuassem acreditando que o Brasil era o país do futuro.
Este acontecimento também foi abordado pelos uruguaios, país campeão daquela Copa do Mundo e que tem a sua visão apresentada no estudo desenvolvido por Álvaro Vicente do Cabo, o qual analisou as crônicas produzidas pelos orientais com intuito de perceber a forma com que eles relataram o mesmo acontecimento, ou seja, buscou-se apresentar a representação dos vencidos e também dos vencedores. A comparação das representações criadas em diferentes lugares e por diferentes atores, pode auxiliar na compreensão simbólica das construções discursivas, bem como identificar a formação da alteridade enquanto um elemento de afirmação nacional. Em seu estudo, Álvaro demonstra que a imprensa uruguaia jamais deixou de acreditar na “raça charrua”, um dos fatores que posteriormente foi mitificado pela imprensa daquele país, como sendo um dos principais elementos que levou a seleção uruguaia ao título. Analisar a forma com que a imprensa dos dois países diretamente envolvidos na disputa representaram a vitória e a derrota dos seus selecionados é uma estratégia interessante para perceber a circulação das ideias, fator significativo para a compreensão do processo de construção das identidades a partir da forma com que se representa o outro.
O texto escrito por Euclides Freitas Couto analisa as influências do regime militar sobre as representações criadas pela grande imprensa em torno do selecionado brasileiro de futebol, durante o período de 1966 e a vitória na Copa do Mundo de 1970. O autor questiona o fato de que o selecionado nacional tenha vencido este evento graças aos esforços realizados pelo governo militar, ou como afirmava a grande imprensa da época, o resultado foi decorrente dos dotes individuais e naturais das feras de Saldanha. Ao investigar as relações sociais do futebol brasileiro num momento de forte pressão política Euclides revela que neste microcosmo foram travados diferentes embates, decorrentes principalmente das visões de mundo apresentada pelos atletas e os projetos identitários almejado pelos cronistas da grande imprensa que sofreram forte influência das novas ideologias que contagiavam o imaginário social em tempos de ditadura militar.       
Política, cultura, ideologias, identidades, ditadura e sentimentos conflituosos são elementos presentes nas diferentes abordagens que compõe esta coletânea. Eles nos ajudam a refletir os meandros do futebol nacional e as questões políticas recorrentes que envolvem a sociedade brasileira, num constante movimento dialético entre razão e paixão.



Miguel A. de Freitas Jr
André Mendes Capraro (orgs.)






[1] Além da crônica, outro gênero tipicamente nacional é a literatura de cordel. Maiores detalhes ver: Costa, Cristina. A Milésima Segunda Noite: da narrativa mítica à telenovela análise estética e sociológica. São Paulo: Annablume, 2000. (especificamente p. 126-131).
[2] Oíndice de alfabetizados no Brasil em 1872 era de 1.56% e, quase quarenta anos depois, em 1920, ainda se mantinha baixo: 7.49%.
[3] Para maior compreensão sociológica do assunto vale a pena cf.: Sodré, Muniz. O monopólio da Fala: função e linguagem da televisão no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1984.