segunda-feira, 9 de julho de 2012

Crônica da Semana


O futebol na Primavera Árabe
por Mestrando Jhonatan Souza (UFPR)


Era quarta-feira em Port Said e não era uma quarta-feira qualquer! Vencer de virada por 3 a 1 uma partida contra o poderoso Al-Ahly Cairo não fora tarefa simples para o time do Al-Masry. Entretanto, o que aconteceria nos minutos finais do jogo encobriria o feito, manchando de sangue a vitória do clube local.


Quando, nos minutos derradeiros da partida, torcedores do Al-Marsy invadiram o campo em caçada a seus rivais, provocando a morte de 74 pessoas e dezenas de feridos - tudo sob o olhar displicente do parco policiamento - jornalistas de todo o mundo se perguntavam: "o que esta acontecendo?" Quando no dia seguinte, as torcidas do Al Ahly e do Zamalek marcadas pela rivalidade, detentoras de identidades supostamente inconciliáveis, marchavam de mãos dadas nas ruas do Cairo, cantando para a deposição da junta militar de transição e em defesa da punição dos responsáveis (incluindo ai as forças de segurança) pela tragédia de Port Said - entendida de imediato como uma represália ao engajamento dos torcedores do Al-Ahly nas manifestações da praça Tahrir - os analistas mais ortodoxos devem ter se perguntado: O que fazem esses torcedores à rua? Por que cantam palavras de ordem políticas e não os hinos dos seus clubes? Ou melhor, por que os hinos de seus clubes ganharam conotações políticas? Em outros termos: Porque não se comportam como a teoria determina? Será que fazem de propósito? Será que querem acabar com meus esquemas explicadores? 
            A perplexidade de alguns analistas frente aos eventos de fevereiro em muito se assemelha aos primeiros comentários e reportagens sobre a chamada "Primavera Árabe" e são exemplares da necessidade de revermos alguns de nosso conceitos mais caros. Os eventos de 2011 trazem à tona, novamente, o debate sobre o papel político que o futebol tem desempenhado em diversos contextos históricos e chama a atenção para a necessidade gritante de pensarmos as relações políticas para além dos lugares clássicos, dos partidos, sindicatos, etc. As análises sobre os eventos coetâneos, tem identificado uma série de espaços onde foram gestados os ideias de mudança, dos cafés tradicionais do Cairo aos estádios de futebol, das universidades aos estudos teológicos, e uma pluralidade de mecanismos de divulgação dos protestos, da internet à televisão, dos torpedos sms ao tradicional boca a boca, de convocações de instituições religiosas à convocações de torcidas organizadas. Entretanto, as análises nesse sentido, tem restringido seu olhar ao caso egípcio, ao lado desse país, na Líbia, uma caso interessante de relação entre futebol e política merece ser estudado mais a fundo. 
            Temos ciência que o termo "Primavera Árabe" é demasiado amplo e esconde uma diversidade de processos que, muitas vezes, guardam mais diferenças que semelhanças entre si. O caso líbio é exemplar nesse sentido, por se configurar enquanto uma guerra civil clássica, com direito à intervenção da OTAN e suporte estrangeiro à oposição. Entretanto, acreditamos que essas colocações não são suficientes para a compreensão do processo, e entendemos que um "olhar pelos gramados" pode dar-nos pistas interessantes para a compreensão da sociedade líbia e de suas tensões internas. Ao que tudo indica, desde o processo de independência, organizações de jovens e recreativas, tem desempenhado um papel importante nesse país e após a chegada de Kadafi ao poder, essa situação ganhou nova roupagem. Em seu "Livro Verde", que durante muito tempo foi entendido como a sustentação teórica do regime, o líder político dedica algumas palavras aos esportes na parte intitulada "Desporto, equitação e espetáculo", onde tece duras criticas aos processo de espetacularização dos esportes, à divisão entre jogador e expectador e a algumas modalidades em específico, como o boxe e os esportes de luta. A despeito de suas críticas, a família Kadafi tornou-se, com o tempo, uma grande investidora no mundo futebolístico, controlando grande parte dos clubes locais e investindo em clubes europeus como as equipes italianas Juventus e Triestina e chegando mesmo a tentar comprar o Milan, do velho amigo Berlusconi. Além dos clubes locais, a federação de futebol e o comitê olímpico líbio estiveram, como outras instâncias de poder, nas mãos de filhos do ditador.
            Falando em filhos, uma trajetória que merece ser estudada é a de Saadi Kadafi, o filho-boleiro do ditador, que jogou em alguns dos melhores clubes locais como o Al-Ahly Trípoli e o Al-Itthad, teve cadeira cativa na seleção da Líbia, chegou a "jogar" em alguns clubes italianos e, ao se aposentar, assumiu o controle da federação líbia, sendo um dos principais parceiros de Blatter na África durante as eleições para a FIFA em 2002, o que estimulou a Líbia a concorrer conjuntamente com a Tunísia - outro país atingido pela primavera - para sediar a copa do mundo de 2010. Entretanto, não devemos pensar as relações de poder de forma unilateral, se é verdade que o Estado líbio interviu no futebol, utilizando-o muitas vezes como propaganda do regime, o caminho oposto também foi percorrido, e dos gramados assistimos a estalos de subversão à ordem estabelecida. Nesse sentido, vale estudar as manifestações contrárias à presença de Saadi Kadafi no futebol, e as manifestações contra o favorecimento que alguns árbitros supostamente davam ao time do filho do ditador, essas manifestações que começavam com questionamentos próprios do universo futebolístico, não raras vezes, ganhavam conotações políticas, desembocando em criticas ao regime político e terminando em repressão policial e morte. A rivalidade entre os clubes do Cairo e de Benghazi é outro capítulo interessante dessa história, que chegou ao ponto de o Al-Ahly Benghazi ter seu estádio demolido por determinação do governo. Vale ainda ressaltar, que durante a guerra civil, os prédios da Federação de Futebol e do Comitê Olímpico, foram um dos primeiros a serem invadidos e depredados pelos opositores. 
            De fato, são inúmeras as possibilidades de pensar a Líbia por meio dos esportes. No plano das relações internacionais, o apoio ao atentado nas olimpíadas de Munique, a fundação do Hugo Chavez Stadium, as relações com as famílias Agnelli e Berlusconi na Itália, a disposição em sediar competições internacionais, etc. Durante a própria guerra civil, as deserções de jogadores da seleção líbia para Benghazi, a ocupação do Hugo Chavez Stadium rebatizado de "Mártires de fevereiro" pelos opositores ao regime e a posterior participação do país na Copa Africana de Nações, pós-deposição de Kadafi, dão-nos a medida das relações estabelecidas entre futebol e política nos eventos contemporâneos. Essa relação sobreviveu até os últimos instantes do regime e dias antes das forças de oposição ocuparem o palácio do governo, tendo a maior parte das grandes cidades sob controle dos rebeldes e o espaço aéreo do país ocupado pela OTAN, Kadafi, em uma clara tentativa de legitimar seu governo internacionalmente, convidou o excêntrico presidente da Federação Internacional de Xadrez, Kirsan Ilyumzhinov, para uma partida em Trípoli. O convite foi aceito e a partida terminou empatada. Sorridente, Kadafi protelava por mais alguns dias o inevitável xeque-mate.                                

fonte: http://portal.uepg.br/noticias.php?id=2827