domingo, 8 de setembro de 2013

Crônica da Semana


Futebol e sociabilidade

por Ernesto Sobocinski Marczal

futebol-de-rua

Há pouco tempo desembarcava no Aeroporto Internacional Ministro Pistarini, mais como conhecido como Aeroporto Internacional de Ezeiza. A principal porta de entrada para a Argentina, sobretudo para aqueles com destino a sua charmosa capital, Buenos Aires. Ao descer do avião, passar pela migração e recolher minha bagagem, dava meus primeiros passos rumo a um período razoável de estudos em um lugar desconhecido. 


A princípio, nada de mais. Afinal, em termos simplórios, generalizantes e quantitativos, o ato migratório não constituiu mais do que uma ação cotidiana para milhares / milhões de pessoas. Resguardadas as diferenças abissais entre a infinidade de motivações, conjunturas, singularidades e subjetividades que conformam cada caso específico, e sobre as quais não tenho a mínima pretensão ao discorrer, não passo apenas de mais um. Ainda assim, da posição única que desfruto nesta narrativa, não posso deixar de compreendê-lo como uma experiência única, sobretudo levando em consideração o tempo ínfimo que já passei longe de casa, relativamente sozinho e por conta própria – nem mesmo agora, com toda quilometragem que se interpõem entre meus conterrâneos mais próximos, creio que esta assertiva valha plenamente.

Atividades cotidianas e banais, como as tarefas domésticas e a manutenção econômica do lar, passaram a adquirir novo peso e significado. Do mesmo modo, as sutis, mas constantes diferenças culturais demarcam de forma perene minha condição de outsider, apesar de que os desafios cotidianos sejam extremamente distintos, com embates muito mais brandos, do que aqueles demarcados no modelar estudo de Elias e Scotson a partir do vilarejo ficcional de Winston Parva.

Exemplo sintomático é o implacável manejo da língua local, bem como de suas indiscerníveis implicações aos mecanismos de linguagem. Para alguém que guarda dificuldades no acento, como eu, não são necessárias mais do que três trocas de palavras para escutar a infalível questão: ¿Dondé sois

Em uma das minhas passagens pela universidade, não demorou muito para que uma das professoras, sem saber o meu nome direito, se referisse a mim como “estrangeiro”. Ainda que de forma inocente e despretensiosa, demarcava-se uma diferença a mais com relação ao resto do grupo. Em um pensamento rápido, que me ocorre agora em meio à escrita, me dou conta que a pergunta concernente ao local da onde venho normalmente antecipa o questionamento a respeito do meu nome. Quase como se a consciência sobre o local de origem do indivíduo sobrepujasse a relevância de uma referência mais direta de quem ele é, embora as duas coisas não possam ser tão facilmente dissociadas. Indício disso é que não raramente nos inteiramos da paragem de onde provem o indivíduo ao passo que, ao final do diálogo, sequer sabemos como chamá-lo.

Confesso que estou me desviando muito do que havia imaginado para a redação deste texto. Mas, ainda assim, a indagação subsequente mantem a pertinência: e em meio a estes devaneios, aonde entra o futebol? Bem, de uma maneira simples, ele é um dos mecanismos que tem me permitido uma maior aproximação e interação com as pessoas ao meu redor. E isso não é de hoje! Pelo contrário, em minha curta vivência, o futebol, em diversas facetas, atuou como um importante operador de sociabilidade, principalmente ao ingressar em novos espaços, nos quais iniciaria a convivência com indivíduos ainda desconhecidos – episódio este que agora se repete.

Mudanças de escola e de casa; entrada em um novo emprego; frequentar aulas em distintas universidades. Sob variadas circunstâncias o gosto pelo futebol serviu como traço cultural que viabilizou um processo inicial de identificação / aproximação com o(s) outro(s), bem como abriu caminho para subsequente diluição da dicotomia em favor da condensação de um sentimento de pertença. Obviamente, o esporte não atuou como fator único, tampouco como elemento predominante. Muitas vezes, sua ação foi apenas tangencial como um nó característico que adicionou uma camada a mais às relações, estreitando laços de maior ou menor afinidade.

Levando em consideração as múltiplas dimensões culturais que o jogo adquiriu ao longo de sua própria trajetória, suas possibilidades como mediador de sociabilidades, inclusive na configuração simultânea de códigos e espaços de domínio público, multiplicaram-se exponencialmente. Deste modo, não podemos descartar as diferenças entre as variadas maneiras em que pode suscitar ou permear formas de interação. Afinal, por mais que se mantenha um elo comum, não podemos apreciar igualmente a experiência dos indivíduos como torcedores aficionados em um estádio, com aquela verificada em uma conversa na mesa de bar ou com as sensações desfrutadas por aqueles envoltos no embate dentro da cancha. Por mais que os sujeitos possam passar por todas estas situações, mesmo uma ou nenhuma, elas representam conjunturas diferentes, repletas de sutilezas e gestos particulares a serem considerados. Cabe adicionar que não tenho nenhuma pretensão em me deter sobre estes, ainda mais quando um grande número de estudos já os tem feito, inclusive com a indispensável adesão da análise de gêneros, seus enfrentamentos e disputa de poder inerentes. 

Claro que estas reflexões não podem ser generalizadas e tampouco espero supervalorizar o esporte enquanto elemento cultural – como certamente deve parecer. Ao contrário, são apenas alguns esboços atinentes a parte de minha própria experiência, na qual o futebol tem se mostrado uma marca significativa. Inclusive aqui, em Buenos Aires. Exemplo disso, é que em diferentes ocasiões, depois de delimitada minha condição de estrangeiro e particularmente brasileiro, o diálogo se desdobrou em direção à temática do futebol. Perguntas sobre a seleção brasileira, a preparação para Copa do Mundo, se haverá algum jogo na região onde vivo e se irei ao estádio durante a competição – o que sinceramente ainda não sei! Do mesmo modo, fui questionado sobre o time para o qual deveria torcer, tanto no Brasil quanto na Argentina. 

Contudo, no breve intervalo de permanência até o momento é a assertiva da prática desportiva que vem desempenhando papel de socialização preponderante. São as partidas de final de semana que me tem permitido estabelecer contato com novas pessoas. Não obstante, há uma consideração importante sobre estes jogos a ser feita: eles são organizados através de uma página na internet em que o público principal é composto por estrangeiros. Seguindo até onde minhas lembranças alcançam, dividi o campo com suecos, ingleses, escoceses, estadunidenses, franceses, italianos, peruanos, mexicanos, colombianos, paraguaios, húngaros, uruguaios, suíços, espanhóis, chilenos, equatorianos e até mesmo alguns argentinos. Ainda que haja uma ampla quantidade de nativos, a grande a maioria dos jogadores (e jogadoras) é de fora do país.

A partir disso, deixo duas rápidas ponderações. 1) A variedade de participantes, com diferentes costumes e linguagens, evidencia a abrangência simbólica do esporte como signo cultural e reforça sua percepção como motivo comum de sociabilidade. 2) Apesar desta primeira constatação, como mecanismo específico de inserção no espaço porteño os jogos dos quais venho participando resguardam uma feição predominantemente marginal. Resgatando a aproximação com a figuração eliasiana, por mais que haja argentinos integrando as equipes, a conformação básica é de sujeitos forasteiros, ainda que uma parcela deles já tenha se fixado há bastante tempo no país. Nesse sentido, as partidas conservam um aspecto de reunião outsider em que a prática do futebol age como eixo partilhado de identificação.

Bem, a ideia era somente relatar um pouco da minha vivência buenairense até agora e, dentro do possível, tentar extrair alguns apontamentos para refletir. De todo modo, acho que já me alonguei demais e acabei por tomar uns poucos desvios ao longo do traçado. Além de tudo hoje é sábado, e se não sair logo perderei a chance de bater uma bolinha esta semana.



Obs: Antes de calçar as chuteiras e partir, reproduzo aqui o texto extraído do blog do Roberto Vieira (fonte: http://robertoblogdo.blogspot.com.ar/2013/08/gordo.html)


O GORDO

por Roberto Vieira

Entrou na sala no primeiro dia de aula.

A turma caiu na gargalhada.

Gordo.

Difícil achar banca para sentar.

O mundo era dos magérrimos adoradores de verdura.

Achou a banca.

Ficava no fim da sala.

Melhor assim.

Quem sabe esqueciam dele?

Raquel sentava ao lado.

Olhos negros e sorriso inacessível.

Ele era gordo.

Meses se passaram.

Jogos colegiais.

O time ia disputar a final.

Téo pegou catapora.

E agora?

Téo era o craque da escola.

O homem gol de olhos azuis.

O time ia jogar com dez quando alguém lembrou:

‘Bota o Gordo!’

O Gordo ficou sem jeito de recusar.

Até Raquel achou graça e deu uma força.

O Gordo jogou com uma camisa rasgada nos flancos.

Primeira bola que chega.

O Gordo domina, enfia por debaixo da perna do marcador e toca no canto.

Espanto.

O Gordo sabia tudo de bola… e algo mais.

A bola chega e as chuteiras adversárias voam a seu encontro.

Primeiro com lealdade.

Depois com pura maldade.

O Gordo deixa a todos na saudade.

Marcou cinco gols nas redes inimigas.

Foi carregado nos ombros, com muito esforço, pelos seus agora amigos.

E recebeu um beijo na bochecha dado por Raquel.

A menina dos olhos negros e olhar inacessível.

Daquele dia em diante?

Era o Gordo e mais dez!