segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Crônica da Semana

FUTEBOL EM MIUDEZAS 

Por Jhonatan U Souza 




           A última edição da revista Cândido, jornal da Biblioteca Pública do Paraná, é dedicada à obra de Newton Sampaio, o primeiro autor moderno do Paraná, na acepção de Wilson Martins. A revista reproduz dois contos de Sampaio: "Caco de Gente", de 1939, e "Quinze Minutos", de 1938. Aproveitei a ida ao barbeiro - em cabeleireiro não vou, por uma questão de princípios - para ler os contos.
            O primeiro narra uma história cruzada de dois personagens, de um lado Ricardo, um estudante que foi passar as férias na fazenda dos pais, descrito por Sampaio como um: "Atleta perfeito. Forte. Corado. Vendendo Saúde". De outro, Teca, uma agregada da família, apelidada de "Caco de Gente", por seu corpo deformado: "Uma ironia da natureza. Um ser que não devera ter nascido. O fantasma da sífilis corporizado. Hereditariedade cruel que zombava de suas vítimas. Estatura atrofiada. Um verdadeiro 'caco de gente". No conto, são dois corpos em disputa, o atlético e o monstruoso. Um bom dilema para pensar os anos 1910 e 1920 em Curitiba, e as mudanças no modelo socialmente aceito de corpo.  
            Em "Quinze minutos", o protagonista vai ao sapateiro, se depara com uma "radiosa mocinha" sergipana, e lhe pergunta se conhece o escritor Tobias Monteiro, ela responde: "-Em que time joga esse bicho?". A citação é periférica, mas remonta a um debate que tomou Curitiba duas décadas antes da escrita do conto. Para alguns, no período, o futebol e os futebolistas, estavam tomando o lugar que a literatura e os literatos ocupavam anteriormente na cidade. Era o novo ponto de referência para os jovens curitibanos.
            Chegando em casa, depois de aparar o cabelo - no barbeiro! - , resolvi assistir um filme. Escolhi Machuca, de Andrés Wood, lançado em 2004. A película narra a história da relação entre Gonzalo, um menino de classe média, e Pedro Machuca, um garoto pobre, que entra no tradicional colégio Saint Patrick, onde Gonzalo estudava, por meio de uma política educacional do governo Salvador Allende. A história é sobre os conflitos de classe no Chile pré-golpe militar, mas as referências ao futebol são constantes.
            O primeiro foco em Machuca, espécie de apresentação do personagem, acontece em uma cena em que o garoto domina uma bola. Gonzalo e Machuca se conhecem no campo do colégio, quando o segundo estava apanhando. Todas as vezes em que Gonzalo vai visitar a favela onde Machuca morava, a primeira imagem que se vê é de um campo de terra batida, cercado pelos Andes, que antecipa os casebres do local. A cena é linda, uma das últimas do filme. A única referência que a película faz à postura internacional diante do golpe militar, se dá em uma breve passagem, onde um homem lê no jornal um pronunciamento da FIFA, no qual a entidade dizia ao mundo, que tudo corria bem no Chile. No mesmo mês, o Estádio Nacional começava a receber seus primeiros presos políticos, se convertendo em um verdadeiro campo de concentração. A referência é uma clara crítica à FIFA.
            Andrés Wood, se tornou conhecido no mundo por sua primeira película, "Historias de Fútbol", de 1997, onde narra a história de três jovens, por meio das quais explora as múltiplas realidades desse esporte no Chile. Os campos de Machuca tem muito de "Historias de Fútbol". Newton Sampaio, até onde sei, não escreveu especificamente sobre o futebol ou os esportes em geral. Contudo, em "Quinze Minutos" e "Caco de Gente", tal qual em "Machuca", as referências ao esporte estão presentes.
            No primeiro caso, é o sinal de que a literatura produzida no Paraná na década de 1930, mesmo que de forma periférica, já absorvia referências ao jogo. Talvez seja um traço do "modernismo anacrônico", do qual falava Wilson Martins. No caso de Machuca, ambientado no Chile de 1973, a popularidade do balompié é capitalizada pelo diretor como recurso narrativo, forma de auto-citação e pretexto para belas tomadas e para uma crítica mordaz à FIFA. Em ambos os casos, o futebol e os esportes estão nas miudezas, o que não impediu que as referências a eles marcassem minha apreciação das obras. Os campos dos arrabaldes de Santiago, abraçados pelos Andes, e a imagem de Caco de Gente, a filha da sífilis, a negação do corpo atlético, não saíram de minha cabeça desde então. Algumas miudezas crescem com o olhar do historiador, não é recomendável despreza-las!